São Paulo, domingo, 15 de setembro de 1996
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A tecnologia do sagrado E-metro

DA "DETAILS"

Hospedo-me no Manor Hotel, parte do complexo do centro de celebridades. Qualquer um pode ficar aqui, embora normalmente só cientólogos o façam. Tenho uma suíte duplex de US$ 250 dólares, o quarto mais opulento e cheio de lustres que já vi. O quarto tem uma camareira. Ela se chama Beatrix, é húngara e membro da Org Mar. Vestida num uniforme preto e branco de empregada, quer desfazer minhas malas. Eu a dispenso delicadamente. Elas estão cheias de cuecas velhas, e não quero que ninguém as veja além de mim.
À noite o publicitário me chama. Decidiram contornar o regulamento e permitir que amanhã eu experimente uma sessão de auditoria. (O credo da Cientologia diz que não se deve brincar com essas coisas; somente os que embarcam para valer devem experimentá-las.) Ao anoitecer, Beatrix entra sorridente, abre minha cama e deixa um chocolate e um cartão de boa-noite, como em outros hotéis, onde a gerência lhe deseja bons sonhos e dá a previsão do tempo. O cartão diz: "±'No dia em que confiarmos completamente uns nos outros, haverá paz na Terra' -L. Ron Hubbard. Tenha uma boa noite'±".
No dia seguinte sou auditado por um ministro da Cientologia, o reverendo Anthony Wyant. É um inglês simpático e complacente que hoje dirige sua própria auditoria particular em Glendale (Califórnia). Ele conta que conheceu Hubbard em 1968, quando embarcou no primeiro navio da Org Mar, o Apollo, no Mediterrâneo. Os voluntários tinham de trabalhar muito, era uma vida dura. Um dia, tomando um atalho proibido pelos aposentos de Hubbard, Tony ficou envergonhado ao encontrar o grande homem no corredor. Ele lembra as palavras que Hubbard lhe dirigiu: "Olá, jovem companheiro". Para Tony, essa comunicação fugaz constitui a prova de que Ron era um homem verdadeiro, bom e compreensivo como um grande Papai Noel, diz ele.
Tony me convida a sentar a uma mesa, na frente dele. Seguro os dois tubos de metal do E-metro (um objeto sagrado para os cientólogos, apesar de, basicamente, não ser nada mais que o galvanômetro usado no detector de mentiras), e ele me pede para falar sobre algum fato que eu tenha em mente.
Ele sorri, esperançoso e receptivo. O que eu lhe disser permanecerá estritamente entre nós, garante. Ele espera que eu conquiste méritos (os ganhos obtidos por meio da auditoria), não apenas para fazer publicidade da igreja, mas porque acredita que sua habilidade possa ajudar meu aperfeiçoamento. Ele quer transmitir para mim o milagre que aprendeu com Ron. Tentando corresponder a sua sinceridade, falo de algo que realmente me afetou -a morte de meu pai. Tony pouco fala; simplesmente pede-me para contar a experiência diversas vezes. A cada vez que termino, ele diz apenas: "Obrigado. Agora volte para o começo e conte de novo". Se eu hesito, ele insiste: "Conte-me o que aconteceu depois". Só. Enquanto falo, ele observa a agulha do E-metro e rabisca num bloquinho.
Falo com toda a sinceridade e clareza possíveis. Ao fim de três longas horas, ele pára: "Acha que fizemos o suficiente?". Tenho certeza de que, se eu dissesse que queria mais, ele teria pegado o bloquinho e recomeçaria.
O regulamento da auditoria obriga o auditor a permanecer passivo. Não deve fazer comentários ou avaliações. Ele simplesmente me presenteia com um exemplar do livro de Hubbard "O Caminho da Felicidade", que na Cientologia equivale aos dez mandamentos, com a dedicatória: "Para William, de Tony". Só. Fui auditado. Curiosamente, sinto-me decepcionado. Havia esperado algo grandioso, misterioso.
Para mim, toda a história de Hubbard havia desmoronado no que os terapeutas chamam hoje de aconselhamento não-diretivo. (Os líderes da igreja teriam fortes objeções a essa comparação; consideram a auditoria completamente diferente de qualquer tipo de psiquiatria.)
Mas a auditoria funciona -se você acreditar. E, para o convertido, é a substantificação da própria verdade da mensagem de Ron. Nos dias que passei no Centro de Celebridades conheci dezenas de pessoas -músicos, produtores, âncoras de programas de rádio, fotógrafos, um campeão de motociclismo e até um vendedor de carros- que contaram como para elas funcionou.
Depois que voltei ao quarto do hotel naquela noite, Beatrix bateu à porta. Ela repara que estive assistindo ao vídeo chamado "Introdução à Dianética", e pergunta-me ansiosamente: "Gostou do vídeo?"
"Foi... muito interessante."
"Também é interessante ler o livro", diz Beatrix, notando o exemplar sobre a mesa. "Mas você realmente só o compreende quando faz a auditoria."
"Eu li hoje", digo-lhe.
"Ah." Ela sorri. Feliz porque encontrei o caminho certo.
Esse é um dos pontos positivos de se ingressar num culto. Num momento de aceitação, se eu decidisse acreditar e iniciar a longa subida da ladeira, poderia recomeçar a vida ali mesmo. Poderia dar as costas ao passado e ter um novo emprego, uma nova casa e um novo grupo de amigos, simplesmente por ter dado o salto da fé.
À noite, o cartão que ela deixa diz: " 'Toda a felicidade que existe está dentro de você'. -L. Ron Hubbard. Durma bem".

Continua à pág. 5-6

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