São Paulo, domingo, 15 de setembro de 1996
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Um testemunho isento

JARBAS PASSARINHO

Não participei diretamente do governo do presidente Ernesto Geisel e, quando lhe coube, pela segunda vez, escolher os governadores, fui preterido em favor do candidato apoiado pelo marechal Cordeiro de Farias. Segundo o então presidente nacional da Arena, dormi governador do Pará e acordei senador, com a missão de liderar o futuro governo, o do general João Figueiredo. A mim disse o presidente Geisel que não fora decisão pessoal dele.
Na verdade, porém, não postulei e não procurei influenciar a decisão dos que tinham o poder ditatorial de nomear os governadores dos Estados. Daí por que também não me provocou o menor ressentimento o fato de não ter sido o escolhido. Em carta, posterior, em meu arquivo, o presidente Geisel diz que a decisão provou certa, dado o meu desempenho na defesa do governo Figueiredo, como seu líder.
Relembro os fatos para enfatizar que o meu testemunho é isento. Não decorre do áulico, que nunca fui, nem do magoado que poderia ter sido, por outras razões que não vêm a pêlo.
Ouso julgar o homem que foi Ernesto Geisel sob a perspectiva dos que não pagam o preço da miopia nem dos que pedem por empréstimo a luneta do dr. Pangloss. Militar de escol, era emblemático no Exército e referencial cultivado na minha arma de origem, a artilharia.
Presidente da Petrobrás, teve a visão de voltar-se para a plataforma continental. Defendi-o, em sessão do Senado, da acusação de que prejudicara os investimentos no território continental. Graças à sua visão, temos hoje a maior produção de petróleo retirada do nosso litoral, onde nossa soberania foi conquistada pela decisão corajosa do presidente Médici, fazendo nossas as 200 milhas a partir da plataforma.
Presidente da República, iniciou seu mandato sob o primeiro choque do petróleo, saltando o preço do barril de óleo de US$ 2 para US$ 14. Aceitou o desafio de endividar o país para aplicar os empréstimos em projetos com garantia de retorno. Tornou-nos o sexto maior produtor de aço e ferro do mundo. Prosseguiu a construção de Itaipu e da usina hidroelétrica de Tucuruí.
Legou-nos a exploração da maior província metalogenética do mundo: Carajás. Criou o Polamazônia, direcionando os incentivos para os grandes projetos, que viriam a provocar polêmica, como polêmica provocou o acordo Brasil-Alemanha para o domínio do ciclo atômico, pelo "jet nozzle", fugindo do monopólio do fechado Clube Atômico, que não transferia a tecnologia e apenas nos vendia caixas pretas.
Não foi um projeto bem-sucedido, mas provocou impacto tal que o presidente Carter, no primeiro dia de seu governo, enviou o vice-presidente Mondale à Alemanha para pressionar o governo de Bonn para não dar prosseguimento ao acordo.
Não foi um simples burocrata, com assento na curul presidencial, mas o estadista de grande porte que completaria a ação administrativa com a compreensão política de aproveitar o terreno limpo pelo presidente Médici, que esmagara a guerrilha urbana, e, assim, pôde lançar as bases para a abertura lenta, segura e gradual.
Teve o mérito maior de escarmentar os grupos inconformados que batizou de "bolsões sinceros, mas radicais", ainda que com sacrifício de um soldado digno e admirável como foi o general Ednardo d'Ávila Melo, incapaz de compactuar com a tortura e ex-combatente na Itália, integrando a FEB, na vitória sobre o nazi-fascismo.
Deixou-nos a dúvida sobre a verdadeira motivação para a demissão de seu ministro Silvio Frota, bem assim a do general Hugo Abreu, nos episódios da luta surda e interna pelo poder. Quando julgou seu dever, eliminou a censura, preparou o fim do AI-5, mas pôs o Congresso em recesso, outorgou a Lei da Magistratura, que não lograra aprovar no Congresso, restabeleceu a eleição indireta para governadores e estendeu para seis anos o mandato do futuro presidente da República, que ele imporia como de sua preferência.
Foi chamado de Idi Amin, em momento deplorável de descontrole verbal de Ulysses Guimarães, e de "Constituinte do Riacho Fundo" pelo verbo sarcástico de Paulo Brossard. Sofreu a reação dos liberais quando se referiu à "democracia relativa", mas foi o artífice da retomada democrática plena.
No balanço de sua vida, o saldo lhe é altamente favorável. Trabalhou até o último dia útil de sua vida. Se fez adversários, compensaram-no largamente os que dele se fizeram amigos. Foi capaz de sentir em si mesmo a pequenez das grandes coisas, o que lhe valeu discernir a grandeza das pequenas coisas de seus semelhantes. Deixa-nos um legado em que avultam a probidade inflexível, a austeridade como conduta permanente e o amor devotado ao Brasil. Em uma palavra: deixa-nos um exemplo a seguir.

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