São Paulo, domingo, 15 de setembro de 1996
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TV tira proveito de surto conservador

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A chamada violência urbana está na moda. E, como de hábito, sendo usada como pretexto para um novo surto conservador no país, do qual cada um tira a lasca que pode.
Os políticos, em campanha, tentam arrancar dele alguns votos. Os programas de TV pegam carona para crescer alguns pontos na audiência.
Para se ter uma idéia da deterioração social e moral em que estamos metidos, basta lembrar que, há pouco mais de dez anos, o governo Montoro, pelas mãos do então secretário José Carlos Dias, iniciava uma corajosa campanha pelos Direitos Humanos nos presídios, ainda sob o regime militar.
Pois bem. Hoje, em plena República democrática, o candidato tucano à Prefeitura de São Paulo, membro do mesmo partido do ex-governador Montoro, faz questão de exibir em praça pública seu "xerife", criado na escola do regime militar, num sinal inequívoco de como quer tratar a violência e a segurança pública caso eleito.
Se até os nossos sociais-democratas regrediram e agora macaqueiam os conservadores, mesmo que seja apenas para ganhar votos, pouco importa, o que esperar da TV, este celeiro do atraso?
Neste quadro, é compreensível que "Na Rota do Crime" seja o programa mais visto da Manchete. Também se entende porque "Cidade Alerta" seja uma das maiores audiências da Record. Hebe Camargo pode chamar o coronel Erasmo Dias para esbravejar contra "os políticos que protegem os bandidos" e tudo bem. Uma enquete no mesmo programa é usada como trampolim para se fazer a apologia da pena de morte e por aí vai. Os exemplos são inumeráveis.
A ironia disso tudo é que um programa como "Na Rota do Crime" acaba prestando um serviço involuntário de esclarecimento público. A cada "operação" de caça aos bandidos gravada pelos policiais, que atuam como dublês de repórteres, somos jogados diante das realidades mais abjetas, das situações mais subumanas e terríveis que alguém pode imaginar.
Seria difícil pensar que um ambiente tão hostil e avesso à dignidade humana poderia deixar de produzir os monstros que de fato produz. Quem é tratado como um animal descartável acaba às vezes reagindo como tal.
Este é, infelizmente, o verdadeiro movimento "Reage SP", uma espécie de guerra civil surda e autofágica, que só provoca a indignação geral quando abandona a periferia, onde faz seus mortos diariamente, e chega aos bairros frequentados pela classe média.
E que nenhum oportunista venha dizer que tais argumentos não passam de sociologia barata diante da dor da família das vítimas. Quem costuma usar a dor alheia para fazer proselitismo diante das câmeras de TV, em programas como os que foram citados, não são aqueles que de fato a respeitam.
*
Mesmo sabendo que um caderno sobre televisão não é o lugar mais adequado para citar filósofos, talvez valha correr o risco do ridículo, em homenagem ao mínimo de reflexão que tem faltado à TV:
"É possível que uma horda de bandidos desenvolva traços positivos de coletividade humana, mas essa possibilidade aponta sempre as falhas da sociedade maior, na qual esse bando existe. Em uma sociedade injusta, os criminosos não são necessariamente seres humanos inferiores. Na sociedade totalmente justa, eles seriam ao mesmo tempo desumanos. O sentido correto de juízos isolados sobre as coisas humanas só é obtido na sua relação com o todo".
Frase de Max Horkheimer (1895-1973), pensador da Escola de Frankfurt, em artigo de 1937.

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