São Paulo, sábado, 21 de setembro de 1996 |
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O futebol é um velho recanto reacionário
MÁRIO MAGALHÃES
A discussão sobre a lei do passe é uma dessas polêmicas em que os princípios se sobrepõem, avassaladoramente, ao resto, em que a essência impera diante do pragmatismo. O anacronismo da sobrevivência da instituição do passe não é somente próprio do Brasil, com seus arcaísmos e desafios históricos não superados. Na Europa, onde a reforma agrária integra o passado distante, também é recente a supressão, progressiva, do passe. A manutenção por décadas de uma relação escravagista foi motivada, em parte, pela relativamente nova criação de um mercado bilionário para o produto futebol. Outra razão, não secundária, é ser o esporte mais popular do mundo tradicionalmente reacionário, avesso a mudanças e inovações. É abissal a contradição entre o exercício libertário das possibilidades do corpo, dentro do campo, e a estrutura totalitária fora dele. As relações sociais e políticas no futebol brasileiro relembram o país do século passado, em que a Lei do Ventre Livre, como o passe livre para atletas de 26 anos, causou espanto e ordenou a reação. Hoje os contratos dos jogadores combinam a herança feudal e o presente capitalista. O atleta é escravo e assalariado. O clube, senhor e patrão. Obstáculos conjunturais, como a penúria dos clubes, são argumentos frágeis para a manutenção do regime em que o Estado tolhe o direito de opção do cidadão. O impacto econômico do fim da escravidão abalou muito mais o Brasil do que a abolição do passe afetará os clubes. Fazendeiros foram à bancarrota, empresas quebraram, e muitos escravos, num primeiro momento, só conseguiam um prato de comida mantendo os vínculos com seus senhores. Mas a Lei Áurea sepultou a violência abjeta de um ser humano se apossar de outro e promoveu o desenvolvimento econômico de um país que começava a ostentar ambições. Advogar a privação do direito ao trabalho, como muitos cartolas quando põem atletas na geladeira, é como justificar mão-de-obra escrava nos canaviais, trabalho infantil nas minas e na indústria. A progressiva liberalização do passe, como o fim da escravidão institucional no século 19, vai causar um reordenamento tal que os clubes serão obrigados a instaurar o que protelam: o profissionalismo. É incomparável, por exemplo, o que podem render contratos com TVs e de marketing bem negociados, em relação ao faturamento com as mercadorias humanas, os atletas. Há dirigentes íntegros e bem-intencionados -não os que levam vantagem em tudo- angustiados com as consequências da nova legislação. Mas a reviravolta que provocará, seja em 1997, 1998 ou no dia em que chegar, vai valer a pena. Agora, seria coroada pela suprema ironia de um negro, Pelé, começar a suprimir um dos resquícios do pé no passado de escravidão que o Brasil insiste em manter. O editor-executivo Matinas Suzuki Jr., que escreve neste espaço às terças, quintas e sábados, está em férias Texto Anterior: Contratação tira o emprego de Rubens Barrichello Próximo Texto: No porão Índice |
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