São Paulo, domingo, 22 de setembro de 1996
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Um grande silêncio

JANIO DE FREITAS

Ninguém percebeu, mas do domingo passado até ontem houve uma espécie de semana da verdadeira cultura brasileira atual. Não se fez de exposições grandiosas, edições importantes, espetáculos empolgantes, nada disso. A semana especial foi feita de silêncio.
Durante sete dias esteve por aqui um certo Václav Havel, recebido no Planalto em sua condição de presidente tcheco. Fernando Henrique Cardoso o conhecera quando visitou Praga, há dois anos. Não se soube o que conversaram então, mas, já presidente também, Fernando Henrique tornou pública a impressão que o outro lhe deixara: "Não houve química entre nós. Não basta escrever peças de teatro para ser presidente, não é?".
Não podia, mesmo, haver a química necessária a um intelectual-presidente para que o encontro fosse ao menos agradável para ambos. Havel jamais se apresentou como intelectual, jamais ostentou inteligência ou cultura, jamais se pretendeu capacitado a chamar de burros e outras insolências os que dele discordassem: Havel se conhece, e isso lhe basta.
Mas Fernando Henrique não sabia em Praga quem é Václav Havel. E continuava a não saber quem é Havel ao recebê-lo agora em Brasília. E continuou sem saber depois de recebê-lo. Não percebeu nem a gozação sutil, finíssima, com que Havel respondeu ao comentário mal-educado de que, apenas autor teatral, não tem as condições exigidas pela presidência. Havel fez questão de que o protocolo do encontro incluísse o presente de um livro seu a Fernando Henrique.
Não houve química outra vez. Para um intelectual-presidente, não podia haver, mesmo. Václav Havel é um dos grandes intelectuais da Europa. Não apenas por sua relevância como dramaturgo e literato. É autor de ensaios notáveis de Política, assim com pê grande, de filosofia e sociologia política, entre os quais figuram as mais agudas e abrangentes dissecações da sociedade quando subjugada pelo poder despótico. Um desses ensaios contém o feito de prever, com mais de dez anos de antecedência, o desmoronamento do mundo soviético e a natureza dos fatos internos que a isso levariam.
Havel não é só o autor teatral de que o sociólogo-presidente teve notícia. Mas, não conhecendo o intelectual notável, ao professor de "ciência política" conviria conhecer ao menos, pois são fatos do seu tempo de mestre universitário nos anos 70, a proeminência então alcançada por Havel na Europa, como um dos líderes do movimento político-intelectual que afinal resultou na chamada revolução pacífica dos tchecos e dos eslovacos. Movimento que custou a Havel cinco anos de prisão, a vigilância permanente e ostensiva de policiais depois de libertado, o confinamento a sua casa fora da cidade e a limitação dos visitantes. O que não foi suficiente para afastá-lo da atividade, até que as liberdades públicas e o Estado de Direito foram restaurados em seu país. Este Havel político já foi personagem de livros e documentários europeus -tudo isso ainda desconhecido em certas áreas.
Por sete dias, aquela figura tão rica intelectual e biograficamente, e tão disponível na sua simpatia simples, andou por aqui sem que fosse solicitado a fazer uma conferência, uma palestra, nem um bate-papo com um grupo dos chamados intelectuais brasileiros. Vá lá que o senador José Sarney e o deputado Luís Eduardo Magalhães cancelassem a visita protocolar do presidente estrangeiro ao Congresso: Havel não estaria esperando nada de aproveitável dos líderes parlamentares. Mas supunha, com certeza, que houvesse no país alguma coisa parecida com vida intelectual, ou vida cultural, ou vida artística, alguma coisa por aí.
Václav Havel viu que faz um vasto, um denso silêncio Brasil.

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