São Paulo, domingo, 22 de setembro de 1996
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As relações criminosas

PAULO SÉRGIO PINHEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nunca os pobres e as elites estiveram nas cidades tão separados, como se fossem água e óleo. Os bairros populares são o espaço da violência: há uma coincidência entre os lugares onde os pobres vivem e a morte por causas violentas. Não estamos diante de uma guerra de despossuídos contra proprietários. Enquanto a taxa de homicídios em bairros prósperos de São Paulo, como Perdizes, é de 3 homicídios por 100 mil habitantes, nos bairros pobres é quase 40 vezes maior, como no Jardim Ângela -111 por 100 mil. A criminalidade violenta, como o homicídio, tem como alvo preferencial aqueles em posições sociais similares. Um só assassinato já basta para nos indignarmos, disse um dia Jorge Luis Borges. Mas as elites, do Burundi ao Brasil, têm da morte um sentimento seletivo.
Essa violência endêmica -num contexto de desigualdades econômicas e sociais brutais- longe está de ser um fenômeno novo, aqui e na América Latina. A situação agravou-se nas duas últimas décadas em parte em consequência das políticas econômicas que aprofundaram a concentração da renda e condenaram milhões à pobreza e à exclusão social. É também o resultado direto de longa tradição de práticas autoritárias das elites contra as "não-elites" -práticas rotineiramente reproduzidas nas relações sociais entre os próprios excluídos. O retorno ao constitucionalismo democrático pouco fez para erradicar as práticas autoritárias presentes no Estado e na sociedade.
Aqueles mais afetados pelo desemprego e marginalizados no sistema de educação são os que têm maior risco de serem vítimas da violência arbitrária da polícia, assim como da criminalidade comum, e os bairros populares são o cenário habitual para esses crimes. De fato, em São Paulo e na maior parte das metrópoles latino-americanas, há uma correlação positiva entre as comunidades pobres e a mortalidade por causa violenta. Nessas "pré-cidades geográficas e sociais", para falar como Ignacy Sachs, a população vive em moradias precárias, com insegurança no acesso ao trabalho, à renda e aos serviços básicos. Além disso, o Estado, em particular as agências encarregadas da ordem e da pacificação, estão ausentes nessas "pré-cidades", os excluídos abandonados socialmente à sua própria sorte.
Nesse meio social, a violência torna-se a mediação principal das relações sociais cotidianas. Ora, sempre que o monopólio da violência física legítima do Estado se afrouxa, a sobrevivência do indivíduo depende da capacidade de manter sua reputação por meio de uma "ameaça crível de violência". Em tal ambiente, "uma afronta aparentemente corriqueira não é somente um 'stimulus' para uma ação isolada no tempo e no espaço", segundo um estudo sobre comportamento violento entre as classes mais pobres nos Estados Unidos. "Deve ser interpretada dentro de um largo contexto de reputações, status social relativo e relacionamentos duradouros" (1). A parte ofendida pode sentir a necessidade de recorrer à violência para defender o status dele ou dela. Nesse sentido, a violência é em larga medida uma performance.
Este tipo de violência que prevalece nos bairros mais pobres da cidade pode ser considerado como uma "perda de estrutura na sociedade". Em outras palavras, quando as restrições sociais são relaxadas, e a violência é considerada um meio usual de resolução de conflito, recorrer a atos violentos para resolver disputas na verdade pode ser encorajado. Mas devemos considerar que a violência muitas vezes é a reação de pessoas normais submetidas a pressões opressivas -seja a pobreza, a humilhação do desemprego, a pressão do crime organizado ou o poder arbitrário da polícia. A violência é a característica marcante das relações sociais em países de grande desigualdade social, como no Brasil, e desse modo a violência constitui um elemento de exclusão social.
Os homicídios na Grande São Paulo dobraram em dez anos, passando de 3.696 em 1995 para 7.358. De janeiro a junho de 1996, houve 4.060 homicídios. Os jovens são as maiores vítimas do crime violento em todas as grandes cidades da América Latina. Em São Paulo, uma média de 102 jovens entre 15 e 24 anos de idade são assassinados por cada grupo de 100 mil habitantes nessa faixa de idade. Nas comunidades mais pobres, os números nessa mesma faixa de idade atingem proporções epidêmicas, chegando a 222 homicídios por 100 mil -mais de dez vezes a média nacional de homicídios ou quatro vezes a de São Paulo. O alto grau no qual os jovens são vitimizados pela violência e envolvidos com o crime revela uma relação clara entre pobreza e violência. Não há uma relação mecanicista entre pobreza e criminalidade violenta, mas é imperativo considerar como a desigualdade opera dentro do problema do crescimento do crime na América Latina. E nos EUA, país com pior distribuição de renda entre os mais industrializados e mais alta taxa de homicídios, 11 por 100 mil habitantes: mais de cinco vezes a da França e dez vezes a do Japão.
A maioria dos jovens não tem condições de encontrar empregos ou de permanecer na escola -condições agravadas pelas políticas de ajuste econômico que excluem largos segmentos da população do emprego produtivo e exacerbam as desigualdades. Muitos jovens são tentados a compensar a marginalidade, entrando nas gangues e quadrilhas, enquanto outros envolvem-se com o crime organizado e o tráfico de drogas.
Nesse primeiro semestre de 1996, na capital de São Paulo, os homicídios, atingindo em sua maioria a população pobre e miserável, foram 2.440, enquanto os latrocínios, que atingem mais as classes remediadas foram 120. O homicídio tem, portanto, como alvo preferencial aqueles em posições sociais similares, fazendo com que a maioria das vítimas seja das classes mais pobres. Mas essa constatação não impede que a elite e as classes médias deixem de perceber o crime unicamente como o problema que as afeta.
As classes mais favorecidas tendem a ver o crime como uma ameaça constante das classes pobres, as "classes perigosas", que precisam ser mantidas longe, sob controle e repressão, trancafiadas nas prisões se possível, custe o que custar. Em consequência, o policiamento ostensivo atua como guarda-fronteira dos ricos para conter os pobres (apenas no atual governo em São Paulo, o secretário de Segurança, José Afonso da Silva, está deslocando a polícia para as áreas populares de maior criminalidade violenta). A violência policial em toda a América Latina continua a contar com a impunidade, porque é em larga medida dirigida contra as classes perigosas e raramente afeta as vidas dos que detêm os recursos econômicos e de poder na sociedade. Como se fosse possível haver segurança no centro da cidade sem se eliminar a insegurança na periferia, lembra meu colega Sérgio Adorno.
As políticas de prevenção do crime, como as propostas demagógicas recorrentes em período eleitoral (pena de morte, redução da idade penal, desterro), têm visado menos ao controle do crime e da delinquência que a diminuir o medo e a insegurança da elite e das classes médias.
Enquanto isso, as práticas criminosas das elites continuam praticamente intocadas. A corrupção, as falcatruas financeiras, a fraude fiscal, o trabalho escravo e infantil, a prostituição infantil, os assassinatos no trânsito não são percebidos como ameaças ao status quo. O mesmo, em larga medida, é verdade para o crime organizado, como o tráfico de drogas, o jogo do bicho, a lavagem de dinheiro, o contrabando de armas, o conluio dos agentes do Estado com o crime organizado, que somente agora, no atual governo Fernando Henrique Cardoso, passam a ser alvo de políticas mais consistentes.
Algumas das reformas propostas pelo Programa Nacional de Direitos Humanos, como a criminalização do porte de arma, o fim do foro especial das polícias militares, a investigação federal para crimes de direitos humanos, a criminalização da tortura e da lavagem de dinheiro, o agravamento das penas de crimes no trânsito, deverão contribuir para reprimir o crime violento e organizado, o arbítrio policial e a impunidade do crime.
Enfim, reformas das leis e aumento da eficiência das instituições de controle da violência e do crime são passos decisivos. Mas, tendo em conta a exclusão social da maioria, estender os direitos da cidadania plena a todos (com ênfase nos jovens) continua a ser a base para qualquer política de prevenção do crime. Para construirmos a pacificação da sociedade, democracia com cidadania.

NOTA
1. Ver a respeito Robert Wright, "The Biology of Violence" ("The New Yorker", 13/3/1995). O trabalho seminal sobre homicídio é de Martin Daly e Margo Wilson, "Homicide" (Nova York, Aldine de Gruyter, 1988). Para um debate sobre a noção de epidemia ver: Malcom Gladwell, "The Tipping Point" ("The New Yorker", 3/7/1996). As idéias desse texto foram desenvolvidas num ensaio que a revista "Latin Americana Perspectives" (Nova York) publica neste mês.

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