São Paulo, domingo, 22 de setembro de 1996
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O individualismo oportunista

LUIZ EDUARDO SOARES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nos anos 60, três interpretações originais do Brasil ganharam proeminência, mobilizaram a imaginação dos cientistas sociais e conquistaram razoável grau de consenso.
Uma delas, inspirada por Barrington Moore, definia o processo de modernização do Brasil como afirmação histórica da via autoritária de desenvolvimento do capitalismo. Essa abordagem resolvia o impasse vivido pelas esquerdas, perplexas ante o desenvolvimento acelerado do capitalismo no Brasil, contra todas as expectativas esboçadas nos debates pré-64. Essas expectativas supunham que a aliança entre oligarquias rurais, forças burguesas e imperialismo, constituiriam um obstáculo intransponível ao desenvolvimento das forças produtivas, portanto, ainda no jargão marxista, à promoção de mudanças sociais progressistas.
A ditadura operou o milagre da multiplicação dos pães (sem distribuí-los), consolidando alianças conservadoras entre as elites, mantendo o padrão de exclusão dos subalternos. O conceito "capitalismo autoritário" (ou seus análogos leninistas, propostos, entre outros, por Werneck Vianna e Carlos Nelson Coutinho: "modernização conservadora" ou "via prussiana") introduzia uma nova possibilidade na linguagem analítica da época.
Passava-se a considerar que o desenvolvimento do capitalismo poderia ocorrer com a exclusão das classes subalternas e sem que houvesse as rupturas de alianças oligárquicas verificadas nas experiências históricas das sociedades que conheceram a via democrática de modernização, como a França, a Inglaterra e os EUA. A trajetória do Brasil estaria mais próxima dos casos prussiano e japonês.
Esse insight, formulado pela primeira vez no Brasil por Cesar Guimarães, examinando a "politização da economia", foi desenvolvido por Elisa Reis e, mais extensamente, por Otavio Velho. A república incompleta de que nos fala José Murilo de Carvalho, caracterizada pelo caráter estruturalmente excludente da sociedade brasileira, seria o retrato desse processo genético. Padecemos de um autoritarismo anterior e até certo ponto independente da institucionalidade política, que limita o funcionamento da democracia, seu enraizamento e a consolidação de sua legitimidade.
Há continuidade entre diagnósticos contemporâneos e abordagens que confluíram nos anos 70. Curiosamente, depois do consenso, veio o esquecimento. Pôs-se uma pedra no conceito e em suas potencialidades teóricas. Como se um empreendimento coletivo tivesse se esgotado, não pela infecundidade, mas, ao contrário e paradoxalmente, pela capacidade de gerar consenso. Estranha sina.
Outra contribuição marcante, essa ainda viva, dando frutos, sobretudo entre antropólogos, foi a aplicação criativa por Roberto da Matta, à sociedade brasileira, do modelo interpretativo que Louis Dumont desenvolveu, estudando a Índia. Costumávamos tomar por natural a idéia de "indivíduo", como se os atores sociais ou mesmo os seres humanos fossem, naturalmente, indivíduos, tal como os entendem a tradição liberal ou as tradições religiosas judaico-cristãs, readaptadas aos tempos desencantados do mercado e da ordem burguesa.
Dumont, seguindo Marcel Mauss, mostrara a possibilidade alternativa de sociedades organizadas por princípios hierárquicos, vividos e praticados como valores positivos, estruturantes. Da Matta, em ensaio já clássico, tocou um nervo de nossa cultura quando analisou, como ritual hierárquico, o "você sabe com quem está falando?", sintoma da presença de princípios hierárquicos, da primazia do relacional, sob a superfície da igualdade formal.
A terceira interpretação do Brasil, também publicada nos anos 70, dissimulou-se, com prudência e elegante modéstia, sob a análise do "Sargento de Milícias", elaborada por Antonio Candido em "A Dialética da Malandragem". Ordem e desordem, limites e transgressões, as ambivalências e ambiguidades do malandro teciam um quadro cultural oscilante, "dialético" e sincrético. O Brasil se mostrava estranho à ordem segmentar das identidades e das fronteiras nítidas, próprias à lógica da reforma e das culturas anglo-saxãs. Nossa linguagem das mesclas, legada pelo modernismo e seu "revival" desconstrutivo, o tropicalismo, encontrava sua formulação conceitual mais completa.
Meu propósito é retomar os três fios da meada, as três interpretações do Brasil, fazê-las dialogar e introduzir um novo ângulo. Eis minha tese: a via autoritária de modernização, combinada ao modelo cultural hierárquico, gerou um hibridismo, um sincretismo perverso, uma cultura em duas vozes, contraditórias, proclamando uma dupla mensagem com consequências importantes. Essa dupla mensagem, que socializa os brasileiros, proclama, nos textos escolares, nos discursos políticos, na legislação trabalhista, na convocação universalista ao mundo hedonista do consumo ilimitado: "Você é um indivíduo igual aos demais, cidadão, sob a lei que nos protege". Ao mesmo tempo, a mesma voz afirma: "Você não é como os outros. Você tem um lugar. Ponha-se no seu lugar (superior ou inferior). Seu lugar na hierarquia determinará o modo pelo qual você será tratado pela polícia, pela Justiça, pelos outros".
Essa combinação contraditória assimila o pior dos dois mundos: da hierarquia, que se esvazia das compensações tradicionais (a proteção, dever do superior e a dignidade dos subalternos); e o pior da formalidade moderna, típica do domínio racional-legal, que é a indiferença, a disposição permanente e irrestrita a maximizar benefícios individuais de forma predatória e a renúncia legitimada à responsabilidade pelo outro.
Por outro lado, a dupla mensagem hierárquico-individualista provê armas poderosas às elites, permitindo que as divisões socioeconômicas sejam naturalizadas, com a linguagem hierárquica, e que se lavem as mãos, com a linguagem individualista, em nome do fato que, afinal, nos termos dessa linguagem, não se deve ser paternalista no mundo igualitário da competição interindividual. A dupla mensagem também estimula e justifica a corrupção e a impunidade das elites. Ante ameaças de punição de membros das elites, a cultural relacional mostra toda sua vitalidade. Como já demonstrou Lívia Barbosa, focalizando o "jeitinho brasileiro".
Nesse contexto, é possível compreender como funciona a reação ressentida dos sujeitos que se entregam à criminalidade violenta. Operam um recorte invertido na cultura híbrida, politicamente esquizofrenizante: retêm o osso da hierarquia, que é o poder, e cospem compromissos e valores compensadores, conforme fazemos todos, no dia-a-dia, com outras armas e em contexto não-marginal, adotando o individualismo do modelo igualitário de modo oportunista, mesmo que inconscientemente.
Em outras palavras: a duplicidade sincrética cumpre função política, via socialização híbrida e perversa. As consequências, nas classes subalternas, tendem a ser: (1) desorientação paralisante e apassivadora, na relação consigo mesmo, com seus pais e pares, com seus superiores, bloqueando resistência politizada à opressão e desestimulando projetos de mobilidade ascendente e integração; ou (2) combinação explosiva entre a valorização do poder (numa clave tradicional, hierárquica, esvaziada de valor alheio ao próprio poder e à sua fruição radical) e da disputa darwiniana pela supremacia (encenação perversa do mercado).

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