São Paulo, domingo, 22 de setembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A praga escravagista brasileira

CONTARDO CALLIGARIS
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE NOVA YORK

É falso, de um ponto de vista sociológico, que a miséria produza violência. A relação entre as duas não é biunívoca (o aumento de uma não acarreta um aumento proporcional da outra).
Desde alguns anos, surgiu a idéia de que a relação entre os parâmetros de um fato social complexo não é linear, mas segue curvas parecidas com aquelas que descrevem as epidemias. Estas curvas obedecem ao princípio do "tipping point", ou seja, do momento em que o líquido transborda. Malcolm Gladwell, em um recente artigo para a revista "The New Yorker" (3/6/1996), dá como exemplo a garrafinha de ketchup: o parâmetro da inclinação da garrafa pode aumentar sensivelmente, sem que nem uma gota caia no prato. De repente, um aumento milimétrico da inclinação pode produzir um dilúvio inesperado de ketchup, completamente fora de proporção com o último gesto. O ponto onde isso acontece é o "tipping point".
É tentador perguntar se a violência urbana no Brasil chegou a um "tipping point". Não é necessário, para isso, que algo espetacular tenha acontecido. Pois, segundo o modelo epidemiológico, uma mudança mínima em um processo aparentemente gradual -por exemplo, a modernização- pode ter o efeito do último milímetro da inclinação do ketchup.
Mas, antes de mais nada: de qual miséria e de qual violência se trata no Brasil?
A novidade moderna, que dura 200 anos no mundo ocidental, é que o poder não se exerce mais diretamente sobre as pessoas. Ele é exercido sobre as coisas. Nosso poder sobre os mais pobres passa banalmente pelas consequências de nosso maior acesso ao dinheiro e portanto às mercadorias (incluindo serviços, saúde, educação etc.). Do mesmo jeito, nosso status social não é mais definido pelo sangue, mas pelos apetrechos que possuímos e pela imagem, que, graças àqueles, mostramos de nós aos outros.
A diferença não é pouca, pois ninguém é dominado por ser plebeu ou escravo. E, em princípio, o acesso aos bens, que são marcas e instrumentos do poder, é permitido a todos.
Esta situação não tem nada de idílico, mas parece respeitar nossas condições culturais.
Bem no começo da era moderna, Hegel -que merece ser lido como um grande antropólogo, por ter descrito a nova sociedade e seus impasses- ameaçava os dominadores de pessoas com o pesadelo de uma situação em que eles não saberiam mais como e o que fazer com as coisas, pois teriam deixado esta tarefa para seus servos. Só estes, por consequência, acabariam sabendo como lidar com as dificuldades da vida e, no fim, ficariam com o poder. Um exemplo: o seu Fulano, há anos, pela módica soma de US$ 200 ou US$ 300 por mês, faz para você -leitor de classe média-alta- fila de banco e pagamento de suas contas. Ora, a previsão hegeliana dizia que, no dia em que você tivesse esquecido até o endereço de seu banco, seu Fulano tomaria conta de suas finanças.
Se isso não aconteceu foi também porque a ameaça de tal revolução, em pouco mais de cem anos (do começo do século 19 até Henry Ford), convenceu os donos do poder que -uma vez que o privilégio garantido por casta ou pelo sangue se perdera- tornava-se indispensável oferecer aos antigos dominados algum acesso de direito ao novo sistema de poder, para que não fossem só produtores, mas também consumidores. Nasceu assim uma sociedade fundada na repartição das rendas e na participação de todos nos sonhos do consumo.
No Brasil, talvez por ele ter sido e talvez por ser ainda o maior sistema escravagista do mundo ocidental, a modernização aconteceu pela metade. Nas classes médias, geralmente, a regra é o poder moderno sobre e pelas coisas. Podemos comprar o trabalho de um outro, seus serviços, mas não dispomos de seu corpo. Mas na relação entre as classes médias e as classes ditas eufemisticamente não-favorecidas o poder ainda é poder sobre os corpos, construído no modelo da escravatura. As classes médias brasileiras não abriram as portas do poder sobre as coisas para metade da população do país. Não por razões econômicas: a manutenção do escravagismo caseiro é um péssimo negócio que estrangula o mercado interno. Foi por tradição ou por gosto atávico escravocrata.
Isso já bastaria para entender como, no caso da violência criminosa no Brasil, não está em jogo simplesmente o apetite de coisas. O ladrão brasileiro não está só pedindo posse de mais coisas. Para isto, roubaria do mesmo jeito que seus colegas europeus ou norte-americanos. Roubaria o carro ou o rádio sem matar o motorista. Tiraria a carteira sem apontar uma arma. Arrombaria residências na ausência do morador, não esperaria sua presença para invadi-las. A questão do poder, na relação entre pobres e ricos no Brasil, é antes de mais nada uma questão de posse dos corpos. A violência, portanto, é contra os corpos. São eles que "é bom" possuir.
Hoje, o Brasil está passando por uma modernização acelerada. É suprimido, por efeito desta aceleração, um tempo de transição. Nas filas eternas do correio vejo um exército de office boys. Por um salário que é simples complemento à renda familiar, eles levam cedex, colam selos e ficam esperando. Por seu envolvimento -ao menos durante o horário de trabalho- com o mundo do poder sobre as coisas, a maioria deles está aparentemente aculturada neste mundo. Parecem acreditar na idéia moderna de que, pelo trabalho, por humildes que sejam os começos, eles terão acesso um dia aos bens e ao status relativo.
A figura do office boy está fadada a desaparecer. Mas sua desaparição deveria levar um século. O serviço postal melhorará aos poucos e, ao mesmo tempo, o custo do trabalho aumentará, a educação e a qualificação dos jovens melhorará, de tal forma que apareceriam novas atribuições e gratificações, garantindo às gerações futuras um ingresso mais provável no mundo do poder sobre as coisas.
Agora imaginem que, em uma noite, um toque de vara mágica transforme o correio brasileiro em um correio do futuro: nenhuma necessidade de fazer fila. Um programa de computador permite que cartas e pacotes sejam selados por débito direto na conta da empresa. Na mesma noite, reservas de viagem passariam a ser computadorizadas. A mesma coisa para o serviço bancário etc. Pois bem, estamos no meio desta noite.
Um exército vai acordar amanhã, nem mesmo desempregado, pois empregado no sentido próprio desta palavra nunca foi. Um exército de escravos condenados a assistir a uma transformação das relações de poder em sua sociedade, sem que isso afete sua própria condição: condenados a permanecer escravos em uma sociedade capitalista avançada.
Eles vão saber que a violência que eles padecem não é só frustração de bens e status social. Saberão que se trata de uma violência contra seus corpos. Alguns escolherão a via do crime. Será que para ter acesso aos bens recusados? Ou para experimentar uma violência contra os corpos, prazer ao qual os próprios donos não souberam renunciar? Talvez o número daqueles que escolherão o crime seja maior do que o esperado em um país comparável ao Brasil. Não seria de estranhar, pois, afinal, o sentimento de pertencer a uma comunidade é o que faz com que suas leis sejam internalizadas. E, de fato, este exército de excluídos não pertencerá à comunidade. Submetidos a um outro e arcaico regime de poder, como adotariam as regras internas de convivência de um grupo dominante que não estende a eles as modalidades básicas de seu próprio funcionamento?
Uma estratégia de ação contra a violência no Brasil consiste então em garantir a todos um acesso à forma moderna do poder, o poder sobre e pelas coisas.
Geralmente, nesta altura, levantam-se os braços ao céu. A tarefa de transformação cultural que é exigida para acalmar a violência no Brasil parece radical demais e sugere resignação.
O modelo epidemiológico introduz uma nota de otimismo. Segundo ele, medidas sociais podem parecer ineficazes durante bastante tempo, produzir variações mínimas e insignificantes. Não por isso pode ser decretado seu fracasso, pois cada variação pode estar nos aproximando do momento de inversão da tendência. Saneamento básico, educação, saúde, habitação, crédito etc. são aqui tão relevantes quanto a limpeza das ruas, o respeito às regras de trânsito ou mesmo às expressões cotidianas da cortesia. O "tipping point" de uma inversão de tendência pode ser decidido pela supressão dos elevadores de serviço.
Gladwell, em seu artigo, não toca em um assunto crucial para o modelo epidemiológico nas ciências sociais. Podemos nos perguntar: o modelo é só um artifício de apresentação de fenômenos que não evoluem de maneira linear, ou devemos concluir que fenômenos sociais como a violência devem ser considerados propriamente como epidemias?
Mas neste caso, como não há vírus, como "ela pega"? Qual é o mecanismo de contaminação?
Quase todos os estudos mais significativos que aplicam o modelo epidemiológico à violência ou à marginalidade social escolhem como parâmetro principal (aquele cuja modificação produz mudanças na criminalidade) fenômenos, de uma certa forma, estéticos.
Por exemplo, verifica-se a relação não-linear entre a criminalidade pesada no metrô de Nova York e a ausência de grafites ou a repressão de infrações menores, mas aparentes, como pular a roleta para não pagar o bilhete. Ou verifica-se a relação em um bairro entre criminalidade e limpeza das ruas, ou a repressão de quem urina na calçada.
Se existe um efeito de epidemia, ele parece então derivar de condições esteticamente insalubres. Como se a presença do pacto social e de suas normas se materializasse para cada cidadão na qualidade estética do ambiente cotidiano.
Mais ainda: o pacto social moderno subsiste graças à possibilidade de todos alimentarem sonhos possíveis de progresso. As telas da televisão e do cinema não são suficientes. Ao contrário, elas podem em contingências extremas produzir o efeito paradoxal de demonstrar a irremediável exclusão do espectador. Para que isso não aconteça, é necessário que a feiúra do espaço cotidiano não comprometa sem apelo a possibilidade de sonhar. É necessário também que, neste mesmo espaço, e não só nos programas da Globo, apareçam e circulem pessoas que testemunhem, por sua simples presença, a possibilidade de acreditar nas promessas sociais.
Justamente neste sentido, Gladwell cita um artigo clássico de Jonathan Crane, publicado em 1991 no "American Journal of Sociology". Crane mostra que quando em uma zona urbana pobre o número de residentes profissionais ou trabalhadores qualificados de classe média cai abaixo de 5%, de repente dobra o número de adolescentes que abandona a escola antes do fim do curso e dobra o número de adolescentes grávidas. Cinco por cento é o "tipping point": entre 45% e 5% de moradores de certo sucesso, as percentagens de abandono escolar e gravidez variam de maneira pouco significativa. Abaixo de 5%, os adolescentes não acreditam mais nas regras do jogo: faltam-lhes imagens ideais. A lição custou a ser ouvida nos Estados Unidos, assim como na França, onde hoje, finalmente, enormes complexos para populações de baixa renda estão sendo dinamitados.
Alguma sugestão para o habitat "guetizado" da miséria brasileira?

E-mail: ccalligari@aol.com

Texto Anterior: A epidemia da violência
Próximo Texto: A cidade fortificada
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.