São Paulo, domingo, 22 de setembro de 1996
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A epidemia da violência

GILBERTO DIMENSTEIN
DE NOVA YORK

O médico Rodrigo Guerreiro nasceu na Colômbia, estudou epidemiologia em Harvard, acabou num laboratório a céu aberto, onde misturou ciência e política. Só não foi assassinado e virou vítima de sua experiência porque os cartéis da droga não quiseram.
Trocou o asséptico campus universitário por um cenário de guerra. Ele se tornou prefeito de Cali, dominada pelo tráfico de drogas e por gangues protegidas pela impunidade. O cientista tinha de entender porque ali se produzia uma das maiores taxas de violência do mundo; o político deveria, ao mesmo tempo, apresentar soluções administrativas.
Pouco antes de acabar seu mandato, em 1992, a imprensa divulgou uma lista dos "soldados" do Cartel de Cali. Estavam ali dois de seus guarda-costas. "Vi como a violência cresce, degenera todo um corpo sadio, e o que é anormal vira normal", diz Guerreiro, que hoje mora em Washington e é consultor para assuntos de violência da Organização Panamericana de Saúde (Opas).
Ao combinar os ensinamentos de epidemiologista de Harvard com os corpos estirados nas ruas de Cali, Guerreiro acabou no topo da mais contemporânea visão sobre violência, visto como um assunto sério demais para ser deixado nas mãos apenas de policiais.
"É um problema de saúde pública. Usar apenas a repressão simplesmente não funciona", sustenta o professor da Faculdade de Medicina de São Paulo, o sanitarista João Yunes, diretor da Opas.
Como Guerreiro, João Yunes viu como o germe da violência se propaga em doença infecciosa, ao constatar em São Paulo, sua cidade, onde foi secretário da Saúde, como o assassinato transformou-se na principal causa de morte entre jovens.
Em novembro de 1994, os dois promoveram um encontro da Opas, então dirigida pelo brasileiro Carlyle de Macedo, reunindo médicos, educadores, políticos, jornalistas, representantes de organismos internacionais como Banco Mundial, Organização Mundial de Saúde e Organização dos Estados Americanos.
No século passado, a epidemiologia se dedicava a entender as doenças infecciosas (cólera, por exemplo), depois as crônicas-degenerativas (câncer e infarto) e agora, na década de 90, entrou no campo das moléstias sociais.
A própria cidade de Washington, onde aconteceu o encontro da Opas, é um fértil laboratório. Capital da única superpotência do mundo, com uma renda per capita várias vezes maior do que todos os países do continente, exibe uma taxa de assassinato que é o dobro da de São Paulo e maior do que a do Rio.
As ruas de Washington emitem um sinal nítido aos epidemiologistas, incorporadas ao repertório de descobertas que desmontam mitos: pobreza não produz necessariamente violência.
Esse princípio está em teste não apenas entre especialistas em saúde pública, mas entre economistas. Diretor da faculdade de economia da Universidade de Chicago -a mais renomada do mundo-, o brasileiro José Alexandre Sheikmann transforma em equações matemáticas a visão epidemiológica da violência americana.
Coletou os registros de homicídio de centenas de cidades. Ao mesmo tempo, relacionou seus dados de desemprego, renda, escolaridade, religião dos moradores, cor, entre outros fatores. "Logo vimos que um determinado nível de pobreza não corresponde a um determinado nível de agressão", pondera Sheikmann.
Hoje trabalha-se com a idéia de que a violência é provocada por várias causas que, dependendo do lugar, desempenham diferentes pesos. "Essa multiplicidade torna a guerra muito mais complicada. Não existe uma vacina e não é como baixar a mortalidade infantil", compara João Yunes que, como secretário de Franco Montoro, fez parte da equipe que baixou mais abruptamente as taxas de mortalidade infantil em São Paulo.
Guerreiro começou a coletar em Cali os números necessários aos cientistas que tentam descobrir as causas de uma doença. Descobriu que a idade das vítimas e dos agressores era entre 16 e 24 anos, matavam-se preferencialmente nos finais de semana, de noite, usando armas de fogo, estavam sob efeito da bebida, tinham envolvimento com drogas, viviam em bairros sem policiamento, eram desempregados. "Estabelecemos a situação de risco", afirma Guerreiro.
A partir desse retrato, tentou desarmar os jovens, proibir a bebida depois de determinado horário e lançar programas para geração de renda -logo as taxas iriam recuar moderadamente. "O rapaz não tem emprego e acaba nas mãos dos traficantes, gerando um ciclo vicioso. E, pior, é estimulado porque a taxa de punição é baixa", afirma Guerreiro.
A Colômbia enriqueceu, a renda por habitante aumentou e o desemprego diminuiu, mas a taxa de violência registrada no final dos anos 80 foi multiplicada por quatro em apenas dez anos. Em 1990, beirava 80 por 100 mil habitantes, dobro da de São Paulo.
Mas em alguns lugares, como Cali, chegaram a 100 por 100 mil, e Medellin batia nos 350 por 100 mil. Esses números fizeram da Colômbia o país mais violento da América Latina que, por sua vez, já conquistara o posto de região mais violenta do mundo. A diferença da Colômbia foi que, na década de 80, cresceu o tráfico.
Prefeito de Cali, Guerreiro usou os mesmos métodos que aprendeu com os sanitaristas que lutaram, por exemplo, contra o cólera em Londres, no século passado. Antes da comprovação sobre a existência das bactérias, John Snow suspeitou que determinado poço transmitia cólera pela água; confirmou suas suspeitas ao fechar aquele poço e ver reduzir a incidência da doença.
A medicina sabia que a tuberculose era transmitida por um bacilo, mas nem todas as pessoas, mesmo expostas, ficavam doentes. Daí viu-se que os desnutridos tinham mais propensão, o que deu origem ao conceito de "público de risco".
A pesquisa de Sheikmann constata uma relação entre criminosos e desestrutura familiar -filhos de mães solteiras ou abandonadas pelos maridos compõem a maioria dos assassinatos nos EUA. "Podemos, entretanto, ver filhos de mães independentes e com poder aquisitivo perfeitamente integrados", pondera.
Sheikmann gosta da hipótese de que a violência é um comportamento que se torna uma linguagem, um modo de se comunicar, de resolver conflitos, transmitido para os mais jovens.
É uma degeneração que prospera na marginalidade, provocada pelo desemprego, desestrutura familiar, pobreza, drogas, álcool e impunidade. Esse desvio colocou no topo o conceito de capital social para explicar a violência. Ou seja, a capacidade que uma comunidade tem, por meio das instituições (família, emprego, igreja, escola), de manter a paz social.
Considerado um dos mais importantes intelectuais americanos, William Julius Wilson, professor de Harvard, está para lançar um livro intitulado "Quando o Emprego Desaparece: o Mundo dos Novos Pobres Urbanos".
Ele rastreia a história de bairros americanos, especialmente em Chicago, que sofreram com a perda de postos na indústria, fenômeno que atinge o Brasil e, em especial, São Paulo. Viu que os números de violência seguem o desemprego, que é acompanhado por uma sensação de desesperança, falta de perspectiva e destruição das famílias e decadência das escolas. "Logo, a elite do bairro vai embora, e os que ficam não têm modelos positivos a seguir", afirma Justus.
O desemprego minaria o capital social. Em alguns bairros, o desemprego entre adolescentes bate nos 80%; e, como na Colômbia ou nas favelas do Rio e São Paulo, eles aderem ao tráfico de drogas.
Quanto menor o capital social, maior o conflito. Justamente por isso, Guerreiro olha para os números de São Paulo ou Rio de Janeiro com preocupação. "Já tivemos na Colômbia taxas muito mais baixas que as brasileiras, mas não soubemos controlar: a violência virou rotina", diz.
É um temor coerente com o da epidemiologia, que viu pestes não debeladas dizimar populações.

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