São Paulo, segunda-feira, 23 de setembro de 1996
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Coral reúne descendentes de escravos

LUCY NEEDHAM
FREE-LANCE PARA A FOLHA

O último lugar onde se imaginaria encontrar um grupo coral cujos integrantes são todos descendentes de escravos africanos é em João Monlevade, no vale do aço mineiro. No entanto, é ali que vivem e trabalham quase todos os membros do Coral Família Alcântara.
O coral é composto por 38 pessoas da mesma família. A mais velha tem 90 anos, a mais nova ainda usa fraldas. É um clã que até pouco tempo atrás vivia no quilombo de Caxambu, em Minas Gerais e cujas origens conhecidas remontam à tribo dos Wazilles, de Angola.
Os "spirituals" africanos que canta no dialeto original nagô foram passados para D. Filomena, a matriarca do coro e representante viva mais velha da família, por seus tataravós, que eram escravos. O coral também apresenta congadas e, todos os anos, retorna ao quilombo para celebrar a festa das congadas. Além disso, canta música coral de igreja e até gospel.
Dialeto nagô
"Sempre convivemos com o dialeto nagô", diz Nini, 49, filha mais velha de D. Filomena. "Meu tio-avô contava muitas histórias."
No ano passado, o coral assinou contrato com o selo mineiro Alca Music. Está lançando neste mês o seu primeiro álbum.
O grupo começou quando Pedro, filho mais jovem de D. Filomena, ouviu um ensaio do coro da igreja local e convenceu a missionária holandesa encarregada do coro a ensiná-lo a cantar.
Incentivado por ela, persuadiu outros membros de sua família a se juntarem a ele e fundarem seu próprio coro. Sua irmã Nini, que trabalha como governanta para uma família de Belo Horizonte, trouxe partituras da igreja que frequentava na capital para a família ensaiar.
Pedro se mudou para o Canadá, onde trabalha num ginásio de esportes. Ainda assim o coral se expandiu, sempre respeitando a regra que adotou, de que todos seus integrantes sejam da família ou seus maridos ou mulheres.
A maioria dos familiares mora em João Monlevade, a duas horas de Belo Horizonte, onde quase todos trabalham para a multinacional siderúrgica Belgo-Mineira.
Nos finais de semana, outros membros do coral da família, que trabalham como empregados domésticos ou governantas em Belo Horizonte, vão a João Monlevade para tomar parte nos ensaios. Eles cantam trajando vestes africanas e acompanhados por um atabaque.
Canções como "Talilalilalilê" e "Eru" são cantadas em nagô e falam da comida que seus antepassados comiam ou sobre fugir das fazendas e retornar à África.
"'Talilalilalilê' foi um tipo de comunicação entre os escravos na lavoura -uma maneira de se comunicar com os escravos novos que chegavam", conta Nini.
A maioria das canções foi passada para D. Filomena por seu tio-avô, que era mestre de congada. Algumas delas são versões incompletas porque palavras originais em nagô se perderam no decorrer das gerações e foram substituídas por palavras em português.
O Coral Família Alcântara constitui uma rara celebração da herança africana e sua sutil adaptação no Brasil, que possibilitou a sobrevivência no país. A congada, por exemplo, sempre foi ligada à festa de Nossa Senhora do Rosário, já que os colonizadores e os fazendeiros proibiam a expressão cultural africana evidente.
O percussionista Djalma Correa vem trabalhando com outros músicos mineiros para reavivar a tradição da congada e encontrar os congadeiros remanescentes. "A congada ainda está atrelada à festa de Nossa Senhora do Rosário porque a única maneira da forma musical ser aceita pela sociedade era por meio da Igreja."
Sagrado e profano
O Coral Família Alcântara aproveita essas influências culturais diversas para apresentar um repertório diversificado, que mistura o sagrado e o profano.
A família muitas vezes inclui em suas apresentações públicas duas peças escritas por Nini sobre os africanos.
No ano passado, apresentou as peças no Festival de Arte Negra de Belo Horizonte ao lado de Martinho da Vila, que a convidou a apresentar-se com ele em novembro no Rio de Janeiro.
"O medo de que esta música desapareça nos levou a tentar apresentá-la em shows, para que pelo menos as crianças possam ouvir o pouco que resta de nossas formas musicais e preservá-las. Para mostrar que somos negros e temos cérebro. Antigamente não se pensava assim, as pessoas achavam que o negro nem sequer conseguia pensar", diz Nini.
Nini não tem dúvida alguma do porquê de negros demonstrarem talento: "Quando os traficantes de escravos chegavam nas aldeias africanas, geralmente escolhiam os jovens mais fortes, mais inteligentes e capazes. Com certeza é por isso que os escravos negros africanos que vieram ao Brasil eram tão espertos".
O álbum representa uma contribuição importante para a herança africana no Brasil: "o negro ficou esquecido na história. Ninguém pediu para vir ao Brasil, mas viemos e contribuímos".

Tradução de Clara Allain

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