São Paulo, terça-feira, 24 de setembro de 1996
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Dia de palpáveis heróis da classe trabalhadora

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Era fim do dia. Quer dizer, já tinha acabado o dia útil e era de noite, por volta das 9h. No décimo andar da empresa, onde fica a central de televendas de assinaturas do jornal, uma funcionária contabilizava o trabalho de cada vendedor, afixando números numa tabela grande, exposta no corredor, diante dos elevadores.
A tabela cheia de nomes -dos profissionais de televendas Ronaldo, Patrícia, Gilda, Carlos etc.- funciona como uma espécie de gincana alegre, exibindo marcas e prêmios de incentivo a quem mais vendeu.
Verônica vendeu tanta assinatura que ganhou um automóvel zero quilômetro. Carlos, em segundo lugar, um computador. Fabiano, uma geladeira e assim por diante.
Perguntei à moça que afixava números se aquilo era o resultado das vendas do dia. Disse que era. Me deu então uma inveja súbita e triste -de que o meu dia pudesse terminar também assim palpável de resultados, contabilizado e, quem sabe, premiado.
Pensei na sensação de dever cumprido (aliviante, compensadora) que devia apoderar-se de Carlos e Verônica. Mas, eu? Que resultados eu podia marcar em escore naquele fim de dia? Que migalhas de conquistas e compensações? Que números, num cotidiano repleto de abstrações mal paradas?
É claro que por trás daquele festivo placar de sucesso escondia-se o mais perverso processo de produção capitalista, fundado na concorrência e na exploração da força de trabalho.
Mesmo assim admirei a norma do valor-trabalho regulando em tabela o cotidiano daqueles heróis da classe trabalhadora: que, encarnando as leis abstratas da mercadoria e da economia, pensavam somente em si mesmos para vender, vender e mais vender.
Diante daquele quadro, e enquanto o elevador não chegava, fui me sentindo uma espécie de anomalia mercadológica, sem ter o que enumerar.
E não sei por que tipo de livre associação pensei nos três repórteres da Folha e em um do "Notícias Populares" que foram agredidos na rua, na semana passada, enquanto trabalhavam -Xico Sá e os fotógrafos Eduardo Knapp, Rodney Suguita e Rogério Soares.
Talvez porque eu estivesse me sentindo imaterial. Mas aí, lembrando dos repórteres que apanharam, um deles espancado por Mário Covas Neto, filho de Mário Covas, governador de São Paulo, tudo ganhou realidade, número e orgulho.
Aquilo sim é a matéria necessária, a mercadoria vendida e valiosa. São eles (e eu, por que não?) os verdadeiros heróis do trabalho duro: fotografar e denunciar impostores (sem prêmio e ao custo de socos e pontapés), quer estejam na política, no cinema, na boate pornográfica ou no teatro.
Claro que eu transpusera para o plano profissional um questionamento de ordem pessoal (as migalhas que me sobravam no fim do dia, a insatisfação). Mas era preciso buscar orgulho e serventia no exemplo de alguém. Agora só faltava aplicar o raciocínio consolador à minha vida pessoal, muito embora o elevador já tivesse chegado e eu estivesse indo mesmo para baixo.

E-mail mfelinto@uol.com.br

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