São Paulo, domingo, 29 de setembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O olhar fixo no próprio umbigo

CÁSSIO STARLING CARLOS
EDITOR-ADJUNTO DO MAIS!

O lançamento simultâneo de dois romances de escritores homossexuais centrados na temática do homoerotismo indicam que as editoras brasileiras começam a apostar num filão que tem nos EUA um mercado e uma legião de autores que parecem infinitos.
A leitura dos dois romances permite também avaliar os propósitos e alcances de uma literatura "de gênero", submetida à orientação sexual dos escritores e a de seus potenciais leitores.
Peter Cameron, autor de "O Fim de Semana", publicado pela Record na coleção "Contraluz", lança mão de uma estrutura diversificada a fim de ultrapassar os limites dos relatos pessoais de vivência da Aids, ainda regidos por imposições memorialísticas -como, por exemplo, nos livros de Hervé Guibert e, recentemente, no Brasil, de Jean-Claude Bernardet.
Lyle, um crítico de arte bem-sucedido, sofre com a morte recente de seu companheiro, Tony, vítima da Aids. Em plena ressaca existencial, convida um jovem artista e potencial amante, Robert, para passar um fim-de-semana na casa de campo de um casal de amigos -Marian e John. Seu objetivo é testar a durabilidade do seu próprio afeto diante das exigências de velhos conhecidos.
Por trás deste artifício romanesco, esconde-se o propósito pedagógico do escritor -avaliar as condições de aceitação do desejo homossexual por parte de um público "esclarecido e liberal" (o casal, mas também o leitor).
Cameron concentra suas habilidades literárias na descrição de comportamentos quase que exclusivamente por meio de diálogos. Eles criam em alguns momentos uma intensa, quase teatral, intimidade do leitor com esta cena que não é forçosamente gay, mas democraticamente sexual.
À pluralidade de vozes em ação no presente, Cameron acrescenta ainda um "diálogo no tempo", que dá voz (e corpo) ao fantasma do amante morto.
O texto agradável do autor, porém, esbarra em alguns incômodos. A democracia sexual, por exemplo, é calcada numa distribuição de funções narrativas equilibradas para cada personagem. Esta distribuição desemboca numa polarização excessiva, estereotipada, fazendo dos personagens simples intérpretes de orientações sexuais.
E a promessa literária se dissipa sob o imperativo de veicular mensagens.
Memórias
No romance "O Lindo Quarto Está Vazio", Edmund White escolhe a vertente memorialística para narrar os percalços da vida de um jovem que descobre a homossexualidade.
Este é o segundo título de uma trilogia autobiográfica iniciada com "Um Jovem Americano" -publicada no ano passado pela Siciliano- e que se conclui com "The Farewell Simphony".
White é um dos mais celebrados escritores gays, autor de uma renomada biografia de Jean Genet.
Em "O Lindo Quarto Está Vazio", porém, seu talento dá a impressão de estar sob céu nublado.
A inspiração proustiana presente em "Um Jovem Americano" perde em lirismo e é substituída por uma descrição mais suja -adequada, contudo, às novas experiências, passadas em mictórios e quartos de hotéis baratos na companhia de anônimos.
Seu alter ego é um adolescente inexperiente que amadurece junto a um grupo de pintores vanguardistas, nos anos 50, e atravessa os anos 60 imerso numa onda incessante de heroína. Perdido em Nova York, encontra um momento de redenção nos braços de um rapaz "com jeito de homem".
Mas o idílio é breve. Seus modos efeminados o fazem perder a promessa de paraíso. Seu jovem amante o troca por um fazendeiro do interior.
No fim, encontra seu lugar na companhia dos jovens rebeldes que desafiam a polícia no mítico enfrentamento no bar Stonewall.
Esta crônica tem alguns encantos, sobretudo se encarada como relato geracional, com sua série de promessas e desilusões.
Mas seu relato frequentemente repete clichês, retratando um mundo de vítimas sem escolhas e de rebeldes condenados a reafirmar a própria causa.
Este é o risco desta literatura "de gênero": ficar presa nos muros que delimitam seus próprios interesses e apenas o seu tempo.

Texto Anterior: O trabalho infinito da interpretação
Próximo Texto: BEGLEY; LITERATURA; CONTOS; ROSA; SOCIEDADE; COLEÇÃO; FILOSOFIA; JUSTIÇA; PSICANÁLISE
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.