São Paulo, domingo, 29 de setembro de 1996
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O trabalho infinito da interpretação

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Os 12 ensaios que o crítico literário João Alexandre Barbosa reúne neste livro parecem ser, acima de tudo, uma lição de modéstia e paciência. Mais do que a fruição imediata, entusiasmada, hedonista de um texto, o autor ressalta a importância que há em reler, ponderar, digerir cada obra.
Especialmente se essa obra é um clássico como "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis, ou "Os Maias", de Eça de Queiroz, aos quais João Alexandre Barbosa dedica os dois ensaios mais importantes do volume. São romances, com efeito, que compõem aquela sua "biblioteca imaginária" a que se refere o título da coletânea; os livros de cabeceira, os que não se esgotam numa única leitura.
O que é "um clássico" literário? A pergunta já teve muitas respostas, e João Alexandre Barbosa cita, mais de uma vez, a observação do crítico Frank Kermode, segundo a qual "a sobrevivência do clássico deve depender de ele possuir um acréscimo ('surplus') de significante". Ou seja, significa sempre algo mais do que parece estar dizendo, abrindo assim um leque para diversas interpretações, diversas releituras.
É assim que, analisando "Os Maias", por exemplo, Barbosa identifica, num detalhe descritivo, na fala casual de um personagem, que poderiam passar despercebidos na primeira leitura, a antecipação de eventos que só quem já leu o livro todo sabe quais foram. No caso de Machado de Assis, reaproxima capítulos, nota reaparições de personagens e de figuras de linguagem que, no torvelinho narrativo de "Brás Cubas", correriam o risco de perder-se aos olhos do leitor apressado.
A questão do "clássico" é também abordada no primeiro ensaio do livro. O autor traça a história da constituição de nosso "cânone" literário. Ou seja, de que forma se foi fazendo, num esforço crítico coletivo, a lista das obras fundamentais da literatura brasileira.
Inicialmente, a ênfase era dada a todo e qualquer livro que "refletisse" a realidade nacional. O peso conteudístico, a importância dos motivos tropicais e da brasilidade da obra era maior do que a qualidade ou o interesse puramente literário que esta pudesse ter.
Se é verdade que a partir do crítico José Veríssimo, no começo deste século, este enfoque tenha mudado, privilegiando mais a qualidade formal que o conteúdo nativista -e no livro há um longo texto sobre Veríssimo-, ainda estaria faltando, para João Alexandre, uma revisão completa, uma revolução mesmo, em nosso cânone.
A expectativa inspira um certo ceticismo, entretanto, uma vez que dificilmente haveria tantos novos autores a descobrir, ou celebridades a reavaliar, numa tradição literária tão exígua como a nossa.
Mas é como se João Alexandre, cultor da paciência e da releitura, estivesse secretamente envolvido com um problema que não se limita ao universo especificamente literário. Trata-se da relação entre o "completo" e o "incompleto", entre o "acabado" e o "ainda a ser feito", entre a obra e a promessa, entre a expectativa e a realização, termos que não dizem só respeito à atividade deste ou daquele escritor, mas também ao próprio Brasil, país cujo projeto, vocação ou destino sempre nos parecem maiores do que o pífio resultado em que vivemos.
Com efeito, pode-se falar do Brasil como de algum escritor que, na velhice, foi incapaz de cumprir as promessas que fizera na juventude. Curiosamente, um ensaio de João Alexandre examina a obra de Mário de Andrade -o escritor que mais se identificou com o próprio país- como um esforço afinal bem-sucedido, pelo menos em "Macunaíma", de resolver as próprias contradições, de atender às promessas -imensas- que fizera a si mesmo.
Mais um ponto em que o resenhista cético se choca com um autor esperançoso, ainda que a esperança de João Alexandre seja feita mais de paciência que de entusiasmo; o que é natural, aliás, pois a paciência é a mais esperançosa das virtudes, enquanto que o entusiasmo não passa de uma paixão fugaz.
Mas este choque de atitudes pessoais não teria razão de ser enunciado se não chamasse a atenção, creio, para um ponto importante e a meu ver problemático no livro de João Alexandre Barbosa.
É que, de um lado, todo seu trabalho de releitura, de esclarecimento crítico parece fundamentar-se num pressuposto: o da inteireza, da completude, do acabado que há em cada obra. Vemos isto quando ele fala de Valéry, de João Cabral, de Mário de Andrade ou de Eça de Queiroz. Por outro lado, há a menção a Frank Kermode que já citamos, que pressupõe, por assim dizer, um descontrole, uma superabundância, uma riqueza em cada obra que torna infindável sua leitura.
Em vários momentos, o próprio autor parece estar tematizando essa ambiguidade. Entre o sucesso e o fracasso de que cada obra é testemunho, entre o acaso e a necessidade de que é resultado, entre comunicação plena do conteúdo e obscuridade poética da forma, entre o completo e o ainda por fazer, abre-se na verdade o espaço, a brecha, para a leitura crítica, para a releitura.
A idéia de um espaço, de uma brecha, tem para João Alexandre Barbosa uma importância básica; ele gosta de falar em "intervalo", noção que deu título a uma coletânea de ensaios anterior ("A Leitura do Intervalo", Ed. Iluminuras).
Só que essa idéia do "intervalo" ainda carece, a meu ver, de maior rigor conceitual. Li e reli os dois livros de ensaios, e confesso que ainda me soa obscura.
Por vezes, os "intervalos de Eça de Queiroz" são momentos de antecipação narrativa; há entretanto um "intervalo de tensões e invenções literárias" que é a própria obra de Eça de Queiroz. O autor também fala de "uma região de intervalo situada entre os conteúdos da representação e sua efetivação poética", entre "o concreto da experiência e a abstração da linguagem".
Nestas formulações, a noção de intervalo busca dar resposta ao velho dilema entre forma e conteúdo, e ambiciona superar o debate entre uma leitura "sociológica" e uma leitura "formalista" da obra literária. Diga-se de passagem, o debate se supera, para João Alexandre, à medida que a sociologia, o condicionamento empírico da obra literária, é vencido não pelo crítico, mas pelo próprio escritor estudado, quando reorganiza esteticamente a experiência vivida.
O que, a meu ver, é colocar o problema exatamente no seu ponto de partida; pois a questão é saber quais os condicionamentos sociais de uma determinada tentativa estética, o que não se resolve estatuindo o que há de estético, de ficcional, de reorganizador que ela tem.
A releitura se torna canonizante, mas ao mesmo tempo não se quer "pacificadora"; circula entre a bem-sucedida explicação de texto e a insatisfação diante do próprio esforço explicativo, entre a modéstia e o concludente. Talvez seja este, na verdade, o "intervalo" em que o autor se situa.

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