São Paulo, domingo, 29 de setembro de 1996
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O alto custo da segurança

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A meta do Reage São Paulo, ou seja, exigir do Estado maior segurança contra a criminalidade, não poderia ser mais legítima, pois, por definição, é sobretudo para isso que serve qualquer Estado não-tirânico.
Mas a criminalidade vem produzindo milhares de vítimas anuais há muito tempo, e esse movimento, cujos participantes pertencem majoritariamente à classe média, só se constituiu recentemente em decorrência da morte violenta de alguns jovens dessa mesma classe.
Acontece que exigências ligadas à Justiça viabilizam-se somente quando representam a totalidade dos cidadãos. Isso, claro, se a sociedade se pretender democrática. E, no entanto, o Reage São Paulo, tanto na data em que surge, quanto em seu espírito, aproxima-se perigosamente de uma das propostas menos democráticas que já se fizeram publicamente neste país: a idéia que tiveram alguns bairros elegantes dessa capital de pagar um "extra" à polícia em troca de uma vigilância privilegiada. Além disso, ele veio cercado de invectivas protofascistas contra os direitos humanos e defensores seus, como d. Paulo Evaristo Arns.
A criminalidade e a violência têm inúmeras causas, e a resposta mais simples e imediata que se pode dar a elas é policial e penal. No limite, porém, corre-se o risco de se transformar uma sociedade aberta em totalitária e, se as vítimas da criminalidade privada naquela se contam aos milhares, os atingidos por Estados criminosos chegam aos milhões.
Como nenhuma polícia é capaz de resolver todos os problemas que se originam na política, uma sociedade que queira se manter aberta e deseje ao mesmo tempo melhorar a segurança individual não tem outra escolha que a de levar a mão ao bolso e começar a investir em medidas redistributivas.
O senso comum basta para evidenciar que este é o caso do Brasil, onde a classe média não parece ter outro projeto político que o do consumismo escancarado associado à exclusão total da maior parte da população do paraíso dos shoppings centers. Nossa classe média talvez não note, mas essa combinação se assemelha à atitude da moça que, usando trajes sumários, resolve passear sozinha, à noite, num bairro perigoso e reclama em seguida do estupro. Culpada ela não é, mas ingênua. E esse tipo de ingenuidade subjaz ao Reage São Paulo, um movimento que fala em nome de uma classe que nem é grande o bastante para pesar de fato na política eleitoral, nem rica o suficiente para adquirir os privilégios com que talvez sonhe.
Distante do verdadeiro poder, acuada pela violência e pelo próprio empobrecimento, comprimida entre a massa enfurecível de despossuídos e uma elite voraz que dispõe, entre outras coisas, de condomínios fechados e de um verdadeiro exército de guardas privados, a classe média brasileira, se quiser de fato se proteger, terá que formular projetos que não representem apenas a ela mesma.
Embora não o entenda, ela é a maior beneficiária potencial dos direitos humanos e da legalidade num país onde os ricos estão acima da lei e os pobres, abaixo dela, um país onde um batedor de carteiras pode ser extrajudicialmente executado, enquanto os políticos prestam ruidosamente solidariedade a um ministro cujo filho é acusado de atropelar e matar uma pessoa, mas não ao pai do atropelado.
Cabe a essa classe média não combater os direitos humanos, mas estender sua implementação aos de baixo e obrigar os de cima a respeitá-los, por exemplo, exigindo que garotos de 15/16 anos que dirigem sem carteira seus carros japoneses -e seus respectivos pais- sejam punidos tão duramente quanto se deseja castigar os menores infratores da periferia.
Finalmente, talvez convenha ao pessoal representado pelo Reage São Paulo não só exigir mais policiamento e punição, mas começar igualmente a arrecadar e investir recursos para educar, alimentar e abrigar os meninos de rua que, caso contrário, daqui a alguns anos estarão matando seus filhos. Tudo isso custará muito, mas ninguém nunca disse que democracia e segurança sairiam de graça.

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