São Paulo, domingo, 29 de setembro de 1996
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Tragédias da vida privada

BARBARA MUSUMECI SOARES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando falamos, hoje, em violência no Brasil, pensamos imediatamente em furtos, roubos, sequestros e desconsideramos uma outra modalidade de violência, que também deixa marcas indeléveis, provoca mortes, mutilações e perdas materiais: a violência praticada dentro de casa, pela própria família. Um fenômeno frequente, mas que não tem visibilidade, não mobiliza a sociedade e quase não recebe atenção da mídia.
Os raros dados nacionais disponíveis sobre a violência doméstica, no Brasil, como os da PNAD/88 (Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar), revelam um cenário assombroso, que permanece pouco divulgado: a casa representa, ao menos para as mulheres, o lugar de maior perigo (55% das mulheres agredidas na região Sudeste foram atacadas dentro de casa, e 67% das agressões foram perpetradas por parentes e conhecidos).
Em países como os Estados Unidos, a violência doméstica é, hoje, um tema central da agenda pública e objeto de intensa mobilização da sociedade civil e do Estado. A emergência deste tema foi de tal forma explosiva, que vem produzindo a redefinição das fronteiras entre os espaços público e privado.
No plano legal, o tratamento conferido à violência doméstica transformou-se radicalmente nas últimas duas décadas. A Justiça e as polícias norte-americanas vêm adotando uma política de intervenção nos conflitos familiares e de criminalização do comportamento abusivo.
Desde que os departamentos de polícia americanos começaram a ser processados por negligência nos atendimentos dos chamados domésticos, a noção de que a violência doméstica é assunto de família foi sendo substituída pela política de encarceramento dos agressores. Em muitos Estados americanos, ela deixou de ser, definitivamente, um assunto privado e passou a figurar entre os problemas sociais mais relevantes.
Parte da visibilidade que a violência doméstica adquiriu nos EUA se deve aos esforços das militantes feministas, de profissionais e voluntárias, que desenvolveram projetos de apoio às vítimas, criaram mais de 1.500 abrigos para mulheres, pressionaram os poderes públicos e utilizaram de forma criativa as redes sociais. Paralelamente, a sociedade americana começou a conhecer os resultados das pesquisas sobre a violência em família. Os dados chocaram e mobilizaram a opinião pública.
Os primeiros "surveys" nacionais sobre a violência familiar, de 1980/85, deixaram à mostra o lado sombrio da vida privada: 11% das crianças e dos adolescentes de 0 a 17 anos (6,9 milhões de menores) tinham sido vítimas de severas agressões cometidas pelos próprios pais; 5,3% dos menores tinham atingido gravemente seus irmãos ou irmãs (3,3 milhões); 16% dos casais tinham experimentado ao menos um episódio envolvendo agressão física durante o ano da pesquisa (8,7 milhões de casais) e, em 6,3% das unidades conjugais entrevistadas (3,4 milhões de casais), ao menos um dos membros tinha sido violentamente atacado (dados de 1985).
Embora os índices de violência feminina fossem relativamente mais elevados (3,4% dos maridos agrediram de modo severo suas mulheres e 4,8% das mulheres cometeram o mesmo crime contra seus maridos), sabe-se que, em pelo menos 50% das vezes, as mulheres atacam para se defender.
Os dados atuais sobre vitimização feminina não são menos alarmantes: a cada 18 segundos uma mulher apanha do marido e cerca de quatro mulheres são assassinadas, por dia, pelo próprio cônjuge; as agressões físicas infligidas às mulheres provocam mais atendimentos médicos do que estupros, acidentes de carro e assaltos, combinados (cerca de 2,1 milhões de ferimentos por ano).
Alguns grupos de estudiosos e militantes nos EUA definem o problema da violência pela perspectiva de gênero. Segundo a perspectiva feminista, a violência que atinge as mulheres representa apenas uma dentre as várias formas da violência masculina e expressa a necessidade dos homens de controlá-las e dominá-las. Não se trata de relações patológicas, mas de um padrão de comportamento aprendido e, de várias formas, endossado pela sociedade.
É esse, parece-me, o modelo de compreensão dominante no Brasil, entre especialistas. Uma segunda corrente norte-americana focaliza o problema pelo ângulo da violência doméstica, incorporando a noção de conflito e a concepção de que a violência contra a mulher é um dos aspectos de um padrão mais geral da violência familiar, e seus agentes podem ser mulheres, homens, crianças, homossexuais, heterossexuais etc.
No Brasil, apesar da invisibilidade do problema e da enorme carência de recursos nessa área, desenvolvemos, graças à predominância da perspectiva feminista, a experiência pioneira das Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher (Deam). Embora as Deams não tenham funcionado como o grande foco de resistência à violência contra a mulher como supunha o projeto original, na prática elas têm atuado, paradoxalmente, como delegacias da família, uma vez que têm respondido, ainda que de forma precária, à demanda por intervenção nos mais variados conflitos domésticos.
Se o trabalho destas delegacias não contribuiu decisivamente para diminuir a violência, isso se explica pela falta de recursos, de treinamento apropriado, de consciência da importância do trabalho que desempenham e, principalmente, pela ausência de uma rede sólida de organizações públicas e privadas atuando conjuntamente. A experiência de outros países mostra que não existem soluções únicas ou universais. A eficácia de qualquer iniciativa depende das conexões e parcerias entre as diferentes organizações e instâncias sociais.
Para as vítimas, nenhum recurso isolado é suficiente, pois elas necessitam de múltiplos suportes e, sobretudo, da possibilidade de experimentar e selecionar aqueles que melhor lhes convém. Finalmente, se essas delegacias não estão executando plenamente suas funções repressivas, elas estão chamando a atenção, através de sua prática informal -de mediação de conflitos, arbitragem, aconselhamento, encaminhamentos etc.- para a necessidade de ações múltiplas e concertadas no enfrentamento de um problema tão difundido quanto silenciado.

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