São Paulo, domingo, 29 de setembro de 1996
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Uma farsa de excessos

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

"O Pasquim" fez um belo "auê" nos anos 70, mesclando bazófia e ironia para produzir uma oposição cheia de graça ao regime militar. Reunia algumas estrelas do chamado jornalismo pátrio e foi trampolim para outras, que surgiram nacionalmente a partir dele. Tendo feito parte da turma, é natural que Fausto Wolff, 55, lançando agora o romance "À Mão Esquerda" após anos de recolhimento editorial, suscite certa expectativa em torno dessa obra.
Trata-se basicamente de uma autobiografia romanceada, na qual Wolff procura reconstituir a linha evolutiva de sua família desde a Idade Média (sic!), com ênfase nas próprias peripécias como jornalista, teatrólogo, professor, candidato a deputado federal, entregador de catálogos telefônicos, entre outros ofícios de que se ocupou. Encarnado no personagem Pérsio von Traurigzeit, o autor, porém, avisa por via indireta: "Levem a sério só 50% do que eu digo. O resto é parte do show" (pág. 502). E uma "Nota" introdutória afirma que se trata, em última instância, de um livro de ficção.
Para montar o seu longo "show" de 570 páginas, Wolff bolou a seguinte estrutura narrativa: são 60 capítulos, nos quais, revezando-se com um Narrador e com o próprio Pérsio, familiares e amigos do personagem principal contam casos e expressam seus sentimentos, de modo a formar o que o autor chama de uma "saga poética" familiar. Também entra no revezamento, misturando personagens fictícios e figuras reais, um narrador de apelido "Bobo", encarregado das intervenções que dão conta da história da família nos séculos anteriores.
Surge e ressurge, perpassando tudo, a figura de um "serial killer" misterioso chamado "Mão Esquerda de Deus", que elimina ricaços e políticos brasileiros na atualidade (1995).
O resultado é um alto-relevo literário cheio de pontos altos e pontos baixos.
Vamos, primeiramente, aos "altos". As vozes dos familiares de Pérsio -pai, mãe, primos, irmãos etc.- reconstituem uma ambientação bastante reveladora da maneira como os imigrantes vindos da Alemanha se organizaram no Rio Grande do Sul no início deste século (tal como Pérsio, Wolff nasceu naquele Estado, em 1940, e mudou para o Rio em 1958). Sem cair numa linguagem ensaística, o livro alcança genuinidade ao tratar abertamente da hipocrisia, da ignorância e pobreza de espírito, mas também da garra, da ingenuidade e dos laços de união que marcavam a vida familiar de Pérsio. O destaque, como figura curiosa e bem-acabada, fica para o barbeiro Theodoro, pai de Pérsio, orgulhoso e modesto, austero e benevolente.
Também têm sabor interessante, embora exageradas certamente por conta das fantasias do autor no seu iluminado "show", as sucessivas histórias de conquistas e perdas amorosas de Pérsio, com direito a altas bebedeiras, suingues e generosos bacanais regados a álcool e a todo tipo de drogas, do Rio a Copenhague, passando pela Itália, Grécia ou Vietnã. Fazendo lembrar, ainda que à distância, a famosa transmutação do francês Arthur Rimbaud, que trocou a poesia pelo comércio ilegal de armas, Pérsio "apronta adoidado", entra em aventuras extrajornalísticas tão arriscadas quanto numerosas, enfrenta a clandestinidade por razões políticas e transa, ao que parece, com todas as mulheres do mundo, de prostitutas a grã-finas mais ou menos exóticas.
É com muito esforço de leitura, porém, que se consegue usufruir esse sabor meio farsesco meio aventureiro de "À Mão Esquerda" -e aqui chegamos aos pontos baixos do livro de Wolff.
Com efeito, para fazê-lo, o leitor precisará passar por relatos bastante entediantes do "Bobo", com uma sucessão de "fatos" históricos sem maior interesse, que incluem gracinhas sobre Shakespeare -que teria cruzado com a família Traurigzeit no século 16- e rainhas européias.
Precisará passar também pelas incursões metalinguísticas absolutamente gratuitas, gastas e enfadonhas do Narrador, que expõe suas dúvidas sobre o próprio romance que escreve; e, ainda, abstrair ao máximo a presença, no livro, do tal "Mão" assassino, o qual, embora pudesse potencialmente constituir o fio dramático que falta ao romance, serve na verdade apenas como instrumento artificialmente introduzido no livro para justificar um discurso social/político tosco e rancoroso -por isso mesmo ineficaz-, do autor contra os ricos e poderosos do mundo.
Em outras palavras, o novo livro de Fausto Wolff seria bem melhor se dele fosse extirpado um terço das páginas.
No conjunto, em que pesem as citações ou menções feitas por Wolff aos mais diversos autores das mais diversas áreas do conhecimento humano, sente-se certo desprezo de sua parte em relação a um cuidado maior com a linguagem. De maneira que o livro não desperta qualquer interesse do ponto de vista do estilo. A demonstração disso pode ser dada pela negativa. Na página 392, um personagem chamado Ranulfo afirma: "Ando muito completo de vazios e meu órgão de morrer me predomina. Estou sem eternidades e não posso mais saber quando amanheço ontem. Está rengo de mim o amanhecer e ouço o tamanho oblíquo de uma folha. Atrás do ocaso fervem os insetos e enfiei o que pude do meu destino dentro de um grilo". É gritante o contraste entre a beleza solitária desse pequeno trecho e a rudeza estilística de todo o restante da obra.
Num de seus acessos de fúria e fanfarronice contra o mundo, e "falando" já em 1993, Pérsio afirma que "(...) as redações (de jornal) foram invadidas por jovens resenhistas que sabem tudo sobre as cuecas de Joyce e nada sobre a rua onde moram" (pág. 425). É uma provocação, mais uma das suas, evidentemente, mas, sendo isso verdadeiro ou não, o fato é que as oitocentas e tantas páginas do "Ulysses" de James Joyce são mais fáceis de ultrapassar do que as quinhentas e tantas de Wolff, sem falar que, gostando ou não, sai-se da leitura do primeiro com a sensação, no mínimo, de ter encarado um monumento literário, enquanto ao deixarmos "À Mão Esquerda" a sensação é, em grande medida, de alívio e exaustão.
Assim, se sobram esquetes e histórias curiosas, falta direção artística no "show" de Wolff. É pouco, muito pouco para um autor que certa vez afirmou: "Acho que poucas pessoas escrevem tão bem quanto eu neste país..." ("ABC do Fausto Wolff", 1988).

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