São Paulo, domingo, 29 de setembro de 1996
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O "presidente" de São Paulo

RUDÁ DE ANDRADE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Almeida Salles era mais conhecido como crítico, ou melhor, como intelectual ligado ao cinema. No entanto, a trajetória de sua produção e ação cultural surpreende pela versatilidade. Seus legados, até agora, apenas foram rasteados. Com exceção da sua obra crítica cinematográfica, selecionada criteriosamente e editada com o nome de "Cinema e Verdade" (1), pouco foi feito para se chegar a uma objetiva avaliação do homem Almeida Salles e de sua obra. Uma das causas de tal situação foi a discrição e o altruísmo que os acompanharam na vida.
No que concerne à crítica cinematográfica, ele a exerceu cotidianamente no "Diário de São Paulo" a partir de 1943, passando depois para "O Estado de S. Paulo", onde permaneceu por toda a década de 50 e mais. Antes e depois disso, escreveu esporadicamente, produzindo ensaios, palestras e aulas sobre o cinema.
Sua imagem também foi ligada ao cinema devido a sua permanente relação com a Cinemateca Brasileira, tendo sido um de seus fundadores há 50 anos, no primeiro formato de Clube de Cinema. Presidiu a entidade, desde o início, para no futuro assumir o cargo de presidente de seu conselho.
Entretanto, o que mais o conservou próximo ao universo cinematográfico foi o relacionamento singular mantido com as pessoas dessa área. Poucas destas resistiram ao seu encanto. Assim, os cineastas, dos jovens aos velhos, atores, técnicos, diretores, aspirantes, o que fossem, recebiam o seu conforto, o sorriso benevolente, o esperado estímulo para alcançar os difíceis alvos e, muitas vezes, o apoio concreto para a solução de intricados problemas.
O resultado dessa ação, a importância da presença do sempre disponível Almeida Salles necessita uma aferição objetiva. Não apenas no âmbito do cinema, mas nos vários segmentos de suas atividades. Isto poderia trazer alguma luz à história das nossas artes e cultura que se contém mais ao produto, esquecendo a relevância de seus bastidores.
Francisco Luiz de Almeida Salles, de família tradicional de Campinas, nasceu em Jundiaí em 1912 e morreu em São Paulo no dia 30 de agosto último. Mudando-se para São Paulo, fez seus estudos no Ginásio do Estado e, em 1939, formou-se em direito na Faculdade do Largo São Francisco. Durante toda a vida exerceu a advocacia, principalmente como procurador do Estado, sendo especialista em direito constitucional e administrativo. Na juventude participou da Revolução Constitucionalista de 32, contra Getúlio, e pertenceu ao movimento integralista. Após sua formatura, no início da década de 40, assistindo aulas dos marcantes professores estrangeiros na recém-criada Faculdade de Filosofia, conheceu e integrou-se ao grupo que criou a revista "Clima", entre os quais seu amigo Paulo Emilio que, na ocasião, fundara o primeiro Clube de Cinema de São Paulo, logo fechado pelo Deip, órgão do Estado Novo, de Getúlio.
Sua formação foi essencialmente literária e filosófica. Praticou a crítica literária e escreveu muito sobre artes plásticas, especialmente apresentando artistas em catálogos de exposições. A imagem fascinava-o e sua aproximação com a estética propiciava-lhe interpretações infindáveis que deleitavam os tantos artistas que o rodeavam.
Almeida Salles era de fato versátil. Décio de Almeida Prado, testemunho e companheiro de Almeida Salles desde a época de "Clima", em depoimento, afirmou: "Penso nele mais como um intelectual de amplo espectro, ensaísta literário, poeta ocasional, excelente tradutor de 'Leviatã', de Julien Green, alguém capaz de explicar e julgar com a mesma sensibilidade um poema, um romance ou um filme..."
Conduzido por Santiago Dantas, ministro das Relações Exteriores de João Goulart, a adido cultural em Paris de 1962 a 64, Almeida Salles desempenhou o papel com facilidade, pois era um diplomata nato, um embaixador permanente da cultura. Interligava pessoas, movimentos, opiniões, sintetizava situações complexas e procurava converter divergências em entendimentos. Avesso à polêmica, nunca procurava impor suas opiniões, limitava-se a expô-las.
A elegância de seu comportamento, de sua fala e de sua escrita tornavam Almeida Salles indispensável para certas iniciativas. A disponibilidade e a paciência que tinha com as pessoas facilitavam a sua adesão às causas alheias, fossem tais iniciativas promovidas por instituições, pelo mais despreparado aspirante ou por aqueles que desfrutavam no momento e na sociedade as mais altas louvações. Seu endosso assegurava confiança ou brilho aos projetos, fossem eles pessoais ou coletivos. Nas décadas de 40 e 50, quando diversas iniciativas vieram a criar infra-estruturas fundamentais para as atividades culturais, o papel de Almeida Salles nos bastidores foi marcante, especialmente em relação ao Museu de Arte Moderna de Cicillo Matarazzo, que não o largava, da Vera Cruz, das bienais e da Cinemateca, com Paulo Emilio. Isto sem mencionar sua participação imprescindível na estruturação de numerosos eventos importantes da época.
Não é à toa que, ainda jovem, na formatura da Faculdade de Direito, escolheram-no como orador da turma, quando tinha colegas brilhantes como Franco Montoro, Auro de Moura Andrade, Lauro Escorel ou Cândido Padim. Desde então permaneceu sempre rodeado de pessoas, amigos simples ou personalidades da política, artistas, industriais, profissionais liberais, intelectuais. Foram muitos os que tiveram a oportunidade de desfrutar o seu convívio.
O bar propiciou muito esse relacionamento. O bar teve importância especial em sua biografia. Funcionava como um alpendre ao lado de sua vida. Um local intemporal, como dizia ele. Lá recebia as pessoas, praticava efêmeros repousos, filosofava, escrevia, divertia-se, examinava trabalhos escritos e pictóricos, engraxava os sapatos, elaborava discursos para políticos amigos, fazia de tudo. Nem sempre o bar era o mesmo e havia os diurnos para a hora do almoço e os noturnos para o fim da tarde. Nas viagens elegia um ou dois. Sua mesa era sempre movimentada, com frequência muito diversificada. O bar estava aberto, e ele também, para receber todos, sem discriminação. Peculiar foi sua relação com o "barzinho", nascido em 1948, no Museu de Arte Moderna, com a sua participação.
O museu se extinguiu, transformando-se na Fundação Bienal, mas o "barzinho" continuou. Com algumas mudanças de locais, um período de ausência e alterações, permaneceu até hoje como Associação dos Amigos do MAM. Salles presidiu esse bar, digo essa associação, por muitos anos. Todas essas presidências acabaram por dar-lhe o apelido de "presidente", que aceitava prazerosamente.
Poeta circunstancial, não escrevia pensando em obra poética. Deixou quantidade significativa de poemas, que vem sendo organizada para publicação por seu sobrinho, professor Francisco Luiz Salles Gonçalves, o Chicão. Em introdução ao único livro de poesias que editou (2), Almeida Salles declara: "Os textos reunidos neste livro nunca foram destinados à publicação. O amor pela palavra e a consciência de seu poder encantatório, registrando e transfigurando a circunstância, sempre me levaram, irresistivelmente, a esta prática de captação, por meio dela, da realidade humana e física. Nunca considerei poético este ofício. Usei a palavra e o ritmo e a retórica deles decorrentes para criar tais escritos, onde o andaime da prosa recebe a hera da emoção poética, enleando-se nos seus ramos".
A sua poesia reflete o seu cotidiano e retrata seus amigos, seus locais, suas admirações, seus insetos, como crônicas laudatórias que muito explicam o amor que teve pela vida e pelas pessoas.

NOTAS
1. "Cinema e Verdade". Companhia das Letras, 1988; edição de Carlos Augusto Calil; organização de Flora Christina Bender e Ilka Bruhnilde Laurito.
2. "Espelho da Sedução". Art, 1979.

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