São Paulo, domingo, 29 de setembro de 1996
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Triste sina

ANTONIO ERMÍRIO DE MORAES

A sua rejeição começa cedo -já no início dos estudos. Os alunos da escola de primeiro grau a detestam. Quando a prova é difícil, ela é xingada e odiada. Quando é fácil, é ignorada e esquecida.
Na medida em que o tempo passa, os estudantes se tornam menos tolerantes. Os exames sempre são sinônimos de torturas.
No segundo grau é a mesma coisa. No tempo dos vestibulares, nem se fala. Os candidatos que passam comemoram. Alguns até guardam-na como lembrança.
Mas a maioria que é reprovada parte para os maus-tratos. Muitos a jogam no ralo. Outros, na lata de lixo. Raros são os que a guardam como recordação. Afinal, recordar o quê?
O mesmo ocorre no cotidiano das demais pessoas. Ao longo do ano, ela é intensamente usada. Ora nas máquinas. Ora manualmente. Sua utilidade é essencial para tocar os negócios e transmitir emoções.
Na sua condição indefesa, ela é obrigada a aceitar qualquer coisa. E assim o ano vai passando. No final, nas festas do Natal e no 31 de dezembro, ela é picada e defenestrada.
Neste último mês, acredito que ela esteja passando por forte depressão. Apesar de acostumada a receber desaforos desta vez as ofensas estão passando da conta.
Ela já devia estar calejada com as eleições -quando os candidatos escrevem o que querem e prometem o que lhes aparenta dar mais votos.
Mas tenho a impressão de que ela é daquelas que acham que as promessas deveriam ser feitas dentro dos limites do razoável e que o povo não deveria ser enganado. Muito menos com a sua conivência.
Toda vez que lhe impõem promessas vazias, ela sofre. Os "programas de governo" são verdadeiros festivais de sonhos irrealizáveis. O pior é que ela ajuda a disseminar as mais deslavadas mentiras.
Aqui entre nós, ela tem suas razões. Ninguém gosta de ser usado como intermediário de ofensas pessoais. Os desaforos são demasiadamente grosseiros e totalmente dispensáveis. Mas, na sua posição, ela tem de aturar tudo. Sem reclamar.
O pior é que, depois de tantos usos e abusos dos nobres candidatos, ela é amassada e jogada fora. O único contato dos seus últimos dias de vida é com os varredores.
Alguns param para ver o que ela carrega. Mas a maioria ignora-a, arremetendo-a da calçada para os caminhões de limpeza. Ali ela viaja anonimamente, solitária e rejeitada. Esse é o seu destino.
Mas será utopia sonhar com um ser humano que escreva mais verdades do que mentiras?
Penso que não. Papel e tinta podem ter uma grande missão quando usados para construir e não para destruir.
Pobre folha de papel...! Você não tem culpa de nada. Oxalá o tempo nos ensine a usar melhor os meios de que dispomos.

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