São Paulo, domingo, 29 de setembro de 1996
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Drama de consciência

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - "O melhor carro é o zero quilômetro" -informou-lhe o amigo que sempre consultava em assuntos automobilísticos. Entrara uma grana inesperada, não era muita para realizar seus delírios acumulados, nem pouca para ser gasta por aí, em reles sobrevivência.
Para falar a verdade, nem havia motivos para trocar de carro, estava satisfeito com o que tinha, velho de apenas dois anos e que nunca o deixara na mão. Tampouco se motivara o suficiente para fazer pesquisa de mercado, ler esses massudos suplementos com as melhores ofertas e preços. Limitou-se a consultar o amigo, que lhe aconselhou o óbvio.
Entrou na primeira revendedora, pegou o primeiro vendedor disponível e comprou o primeiro carro que lhe foi mostrado. Por espantosa coincidência, custou-lhe exatamente o valor do cheque que acabara de receber. Ficou com a impressão de que não recebera dinheiro algum e que tampouco comprara qualquer coisa.
O diabo é que estava com dois carros ali em Botafogo. Recusou-se a vender o recém-antigo, nada de especial, mas criara afeto por ele. A situação não chegava a ser nova: durante algum tempo, em passado remoto, ele ficava de repente com duas mulheres e não sabia o que fazer com as duas. Optava então por uma terceira e às vezes dava certo.
No caso das mulheres, a situação acabava se arranjando por si mesma: com ou sem acordo entre as partes, entre mortos e feridos, todos se salvavam. Ali na revendedora, o desafio era novo.
Bem verdade que o revendedor, solertemente, ofereceu-se para levar um dos carros, mas ele recusou com altivez. Para o bem ou para o mal era dono dos dois. Mão estranha não se meteria ali.
Já definiram o amor como laborioso. Foi mesmo por aí. Levou o carro novo, depois tomou um táxi e voltou para pegar o antigo. No dia seguinte, para ficar em paz com a consciência, por uma ninharia comprou uma lata velha caindo aos pedaços.

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