São Paulo, segunda-feira, 30 de setembro de 1996
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Entre o azul do céu e o grande azul da IBM

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

"Quem quer mudanças entra para a IBM, não para a Igreja Católica. Na IBM, são forçados a mudar constantemente."
Essa frase de Umberto Eco, ironizando fraternalmente os teóricos da Teologia da Libertação, me vem de novo à mente no momento em que a IBM decidiu reconhecer os direitos da união de pessoas do mesmo sexo entre os funcionários da empresa.
Ela não é a única nem a primeira. A Disney chegou a enfrentar um boicote de um ano por assumir a mesma decisão. Microsoft e outras grandes empresas na área da informática já haviam decidido trilhar o caminho.
O caso da IBM repercute mais porque ela é imensa, poderosa e, de certa maneira, simboliza os Estados Unidos nesse campo da vanguarda da economia.
Aliás, a própria IBM já apareceu em reportagens do gênero sobre o "dressing down", mostrando como as exigências em relação às roupas dos funcionários estão caindo nos Estados Unidos.
Um ex-diretor da empresa conta que resolveu revisitá-la e descobriu, ao cabo da visita, que era a única pessoa usando gravata por ali. Todos os funcionários, inclusive executivos, estavam vestidos da maneira mais casual possível.
A frase de Eco não me vem à mente apenas por causa da IBM, mas também pelo papa João Paulo 2º, que andou enfrentando manifestações hostis em sua passagem pela França.
Não eram manifestações populares. Eram 5.000, 6.000 pessoas, com slogans contra algumas posições clássicas da Igreja. Mas eram manifestações numa capital latina, daí sua novidade.
As chamadas idéias sociais da Igreja são muito mais solidárias com os pobres do que as idéias da IBM, por exemplo. Mas até que ponto algumas idéias sociais não servem apenas para aplacar a boa consciência num mundo em permanente transformação?
Clinton vetou a união civil de pessoas do mesmo sexo. Clinton está em campanha e decidiu dar uma guinada para a direita, orientado por aquele assessor que pagava prostitutas, a US$ 200 a hora, para ficar de quatro a seus pés.
Os políticos podem se dar ao luxo da hipocrisia. Todos entendem e justificam; afinal, é preciso ganhar as eleições. Mas as grandes empresas, envolvidas num processo permanente de mudanças de estrutura e tecnologia, não podem ficar paradas no tempo. Mudar, corrigir, inovar, evoluir são imperativos da própria sobrevivência.
Cada vez que entro no Congresso, tenho de sentir o aperto da gravata no pescoço. Se trabalhasse na IBM, isso não seria necessário. Será que isso já antecipa alguma coisa da votação sobre a união civil de pessoas do mesmo sexo?
Nossos políticos acham que para discutir coisas importantes é preciso um traje completo. Em Israel, os parlamentares discutem diariamente a própria sobrevivência do país em mangas de camisa.
Eco talvez tenha razão -o dínamo das mutações está na grande empresa moderna, trocando softwares como se troca de camisa, engolindo preconceitos como faquires do Terceiro Mundo engolem suas facas na praça pública.
Certamente esse motor não nos conduz para o reino dos céus, onde um camelo chega mais facilmente que um milionário. Entre esse camelódromo azul em que os sinos repicam pela glória de Deus e o grande azul da IBM brilhando nas estradas de informação, há uma grande brecha, que o intelectual italiano tão bem vislumbrou.
Não é o melhor dos mundos. Mas temos de criar a partir dele -de um lado, o capitalismo em arrancada, reconhecendo a autenticidade do indivíduo; de outro, a consciência social dos políticos e religiosos, perplexa com o novo mundo.
Quem quer mudança entra para a IBM. Mas será essa a mudança que queremos? Ou é possível desejar mais?

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