São Paulo, segunda-feira, 30 de setembro de 1996
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Coisa pequena?

MARTA SUPLICY

Em agosto, fui fazer campanha para candidatas no Pará e no baixo Amazonas, onde há mulheres na disputa para oito prefeituras. As candidatas são jovens, enfrentando a política dos "coronéis", há décadas no poder. E, como elas, pelo Brasil afora, mulheres estão concorrendo nestas eleições. Muitas, em função de atuação político-partidária anterior. Outras, aproveitando os espaços abertos pela cota mínima de 20% de mulheres candidatas e encorajadas pela discussão nacional sobre o tema, a disputar cargos majoritários.
Grande parte delas mostra-se preocupada com a discriminação no cotidiano de suas campanhas, que as leva a buscar a diferenciação de seu discurso, abordando as questões de gênero em suas plataformas políticas.
Os partidos, de forma geral, tentaram preencher a cota mínima de 20% de mulheres candidatas. Entretanto parece-nos que todos, em algum município, colocaram candidatas "laranja" -aquelas que não devem assumir de fato a campanha e ali estão apenas para completar a chapa- ou simplesmente deixaram de preencher as cotas.
E a desculpa tem sido esta: "As mulheres não querem...". Eles não estão totalmente errados nessa afirmação, pois é muito difícil para uma mulher "querer" ser candidata, sabendo de antemão que não vai contar com apoio efetivo do partido nem infra-estrutura doméstica para exercer a atividade política. Pois, se o candidato tem esposa que lhe dá toda retaguarda para que ele se dedique à campanha em tempo integral, quem substitui a candidata em seu papel de mãe ou esposa, na sua dupla ou tripla jornada usual? E a cobrança que lhe é feita por "sair de casa" e até pelo horário em que ela chega?
A experiência inicial com a cota nestas eleições já aponta a necessidade de mudanças na estrutura político-partidária, a fim de que a propalada igualdade entre os sexos, garantida em nossa Constituição, chegue aos níveis de poder decisório. Aliás, temos atualmente 96,5% de vereadores de sexo masculino e apenas 3,5% de mulheres vereadoras. E 99% de prefeitos e 1% de prefeitas. Com certeza, não é por falta de mulheres competentes... Algo está errado!
O que temos percebido nos treinamentos suprapartidários que foram realizados em 22 capitais é que muitas das candidatas "laranja" se rebelaram com o papel de ornamento e assumiram suas candidaturas para valer.
São pessoas que passaram a questionar, de forma até radical, junto com candidatas de militância política mais antiga, a prática política vigente e o funcionamento dos partidos. Uma coisa é comum a todas as candidatas: o que lhes resta, como estratégia de campanha, é o corpo-a-corpo, a criatividade. Buscam fazer valer, como vantagem, a desvantagem histórica de ter que se restringir ao mundo doméstico e às relações interpessoais.
Mas tanto esforço para aumentar a participação da mulher na política, e temos ainda que enfrentar o sexismo "oficial". Provavelmente não proposital, estrutural mesmo! No decorrer da campanha Mulheres Sem Medo do Poder, a bancada feminina do Congresso visitou o TSE e entrou em entendimentos com o ministro Veloso, então presidente, para que, na terceira fase da campanha na TV sobre o voto eletrônico, entrasse um esclarecimento sobre a emenda eleitoral que garante um número mínimo de mulheres candidatas.
Não vimos isso ainda na TV e -pior- presenciamos uma campanha que poderíamos classificar como contra as candidatas. Assistimos à explicação sobre o voto eletrônico com dois candidatos homens: Machado de Assis e Grande Otelo. O mais surpreendente é que, na simulação da urna eletrônica nos shoppings, foram apresentados candidatos dos dois sexos, incluindo personalidades femininas. E a grande vencedora foi Elis Regina.
Por isso, há cerca de um mês, uma candidata a vereadora por São Paulo e eu entramos com uma ação no TSE para que, tanto nos comerciais sobre o voto eletrônico quanto na tela das urnas eletrônicas, se acrescentasse um "a" aos termos "prefeito" e "vereador" ("prefeito/a", "vereador/a"). A ação foi indeferida, e colocaram Elis Regina na propaganda...
Usar o masculino para abarcar mulheres e homens é tão usual que demoramos a perceber a invisibilidade das mulheres na tela da urna eletrônica... Você, leitor, leitora, já havia se dado conta de quanto esse detalhe é importante para sustentar mudanças?
Coisa pequena? Parece, mas são sutilezas como esta que mudam, a longo prazo, a visão das pessoas sobre as mulheres, sobre os homens e assentam novos rumos para a conquista da igualdade real.

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