São Paulo, quinta-feira, 2 de janeiro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Seja livre, menino, largue suas bestas

MARCO RICCA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Lendo artigo de 18 de Dezembro, no caderno de cultura deste jornal, intitulado "Menino, larga de ser besta, menino", do autor, ator e diretor de teatro Dionísio Neto, tive a sensação de entrar no bonde andando, não sei se o artigo foi escrito em resposta a algum outro texto, ou se tratava de um espaço pago, enfim...
Lá estava, um quarto de página da indignação de um jovem dramaturgo, pensei: "Ótimo, a Folha está dando mais espaço para o teatro". Ao ler o conteúdo, me bateu um misto de vazio e indignação.
A fúria -e até alguns jargões que o pretenso artigo contém- me fez, num momento, pensar que poderia se tratar de um jovem pensante. Sem sombra de dúvida, trata-se de um criador. Alguém que tem o desejo de integrar a arte ao seu tempo.
Eu infelizmente não tive a oportunidade de constatar, assim como Antunes Filho, as qualidades dessa novíssima dramaturgia, e talvez não tivesse a oportunidade de testemunhar dois fatos tão raros no nosso teatro.
O primeiro, o surgimento de um Beckett entre nós, nas palavras de Antunes Filho (até porque a própria modéstia o impediria de dizer ele mesmo). O segundo feito talvez por si só já contenha dois outros grandes fatos, diria, históricos: o de Antunes Filho, esse nosso mestre maior, chorar ao ver um espetáculo e, o maior de todos, o de ver o Antunes vendo alguma coisa.
Pode até se tratar de mais um gênio, que seguirá os passos de tantos outros que por muitas vezes foram eleitos -e espero que seja, minha intenção não é de desqualificar o que provavelmente venha carregado de autoridade-, mas me reservo o direito incontestável do exame e da crítica.
Parece que sempre nos cadernos de cultura seremos obrigados a contemplar os pretensiosos recobertos de frases de efeito, que, embalados por uma aura moderna, fazem do despreparo máximas do preconceito.
Curioso e assustador. Mas esses emergentes aparecem porque nos calamos. Fazemos nossas pequenas críticas nas mesas de botequim, mas não nos valemos do mesmo espaço representativo para nos defender.
Por esse motivo fomos vendo o teatro cair nas mãos de encenadores e de pseudopensadores que nos afastaram de nossos reais objetivos, com o aval de veículos de comunicação muito mais fortes do que o nosso artesanal teatro.
Não tenho procuração para defender ninguém, nem o faria, mas gostaria de deixar claro que deste lado da fronteira existe um indivíduo que tem em sua produção, modesta por sinal, alguns clássicos que não considero mera reprodução de obras mortas.
Não acredito que esteja vivendo num museu porque queira encenar Shakespeare, Plínio Marcos, Tchecov, Brecht, nem tenho a pretensão de assassinar esses dramaturgos para dar espaço à minha suposta genialidade.
O dramaturgo Dionísio Neto descobre o ouro quando esbraveja que "é duvidoso alguém que se denomine artista e não tenha nada o que dizer além de repetir o que já foi dito pelos ancestrais".
Realmente não deve haver nada mais repetitivo que ouvir alguns idiotas falando o que outros já disseram; deve ser completamente desnecessário, poderíamos até concluir que isso não é teatro, que para tanto, basta a literatura.
O que podemos discutir, e sinceramente me espanta a ingenuidade, é que por trás de um texto -clássico ou não- existe uma idéia, e por trás dessa idéia existe um indivíduo -no caso, o autor-, e, para que ele seja representado (e não repetido), carecemos de um outro indivíduo invariavelmente esquecido que através dos séculos denominamos ator. (Deus, quanta obviedade!)
Este desprestigiado ofício carrega em seu ato a qualidade de "repetir", por muitas e muitas vezes, o que outros escreveram há cem, 200 anos, ou até mesmo horas antes de seu feitio, e conseguir transmitir o frescor, a atualidade de suas críticas e poesia.
O que interessa nas obras não são meramente suas mensagens objetivas, cotidianas, que relacionamos grotescamente com as nossas aflições momentâneas.
Talvez Brecht não montasse Brecht atualmente, talvez na evolução de sua vida hoje não mais lhe interessasse, talvez Brecht fosse em nossos tempos um convertido, e poderia ter se transformado num confortável neoliberal.
Mas sabemos todos que, ao montar Brecht, não estamos montando apenas uma história maravilhosa, mas trazendo a força da história de um homem que, em seu tempo, se serviu de sua arte e de uma forte ideologia para colaborar com tempos melhores. E assim, em nossos tempos descrentes, podemos ter o aval dramatúrgico e histórico, se nos interessar.
Não se recuperam obras porque o "autor é consagrado e pode facilitar as negociações com patrocinadores" ou "seduz comissões julgadoras". Artur Azevedo é montado por que é necessário. Sei lá quem estiver montando Artur Azevedo, que esteja montando para seduzir público e facilitar a comunicação, se esse for o seu interesse.
A verdade é que tudo no texto soa como um subdiscurso, um digestivo palavreado com pretensas frases semi-escolares de uma cartilha pós-moderna que pensei já sepultada. Fala-se em antropofagia, em frankensteinização, em preferência por 007 a performance de butô. Desordenado e disperso, evasivo, fala de tudo e não fala de nada. Mais um niilista de plantão -espero, recuperável.
Citar Zé Celso, Antunes e, ora, veja, Gerald Thomas como sendo os únicos que conseguiram o feito de montar textos clássicos e imprimir algo de pessoal, o que é isso?
Existe teatro além desses aviões de carreira. Esses já são intocáveis -quer dizer, no caso do dramaturgo até Gerald Thomas é intocável, ótimo, tudo bem, mas o teatro brasileiro está além desse umbigo. Provavelmente é o que Dionísio corteja, porque é "chique", ou "para estar mais próximo da mídia", nas suas palavras.
Eu poderia numerar diversos outros encenadores que estão pensando o seu tempo e que vivem ao lado do universo dos autores quem desvendam, casos de Fauzi Arap, Antonio Araujo, Francisco Medeiros, Enrique Diaz, Marco Antônio Braz, Gabriel Villela, Ulysses Cruz, Aderbal Freire, Emílio di Biasi, tantos que entre acertos e erros colaboraram e colaboram para a nossa reflexão, imprimindo as suas visões pessoais a tudo que fazem (diga-se de passagem, tudo é uma "visão pessoal").
Alguém que fala de "modernismos que não passam de nova maquiagem para teorias ultrapassadas" e cita Gerald Thomas, ou melhor, trabalha com o próprio, é no mínimo mal informado. Quem será este cover que Dionísio cita? Ou melhor, será que citar o excita?
Meu problema não é com o jovem dramaturgo. Esse vem a reboque. É a extensão dogmática a que parece pertencer. Parece que as impropriedades se vão e deixam uma imensa "rabeta", que é até mais perversa, tanto para nós que observamos como para os seguidores.
Só tenho vontade de dizer: "Seja livre, menino, largue suas bestas, menino, largue suas bestas". E siga com a sua compulsividade, porque não há nada mais cerceador e conservador do que impor a obrigação de sempre inovar. Tudo é muito velho nesses novos tempos. O que se diz hoje, só com muita convicção (digo ideológica mesmo) se consegue reafirmar amanhã. O teatro é, e sempre será, uma arte subversiva, seja a sua base alavancada em textos do século passado ou na novíssima dramaturgia. E viva Dionísios, Dionísio.

Texto Anterior: Réveillon de 1999 será de terror para computeiros
Próximo Texto: Favela carioca é cenário de "pornô neo-realista"
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.