São Paulo, quinta-feira, 2 de janeiro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Sem movimento

OTAVIO FRIAS FILHO

Os balanços de fim de ano ressaltaram, entre as perdas de 96, os Mamonas e Renato Russo. Por que não existem movimentos culturais como os de antigamente? Russo era um trovador notável, muitas vezes autêntico poeta, mas esteve longe de formar um "movimento", justo ele que detestava qualquer rebanho.
Temos modismos fulminantes, como os Mamonas, tantos quanto verões, e essas trajetórias à parte, como a estrela de Renato Russo, mas nada que se compare à bossa-nova ou ao tropicalismo. Surgiu um novo cinema, uma tendência frouxa de autores meio ecléticos, quase o oposto do que foi o "cinema novo".
Recentemente foram celebrados os 40 anos do concretismo -por estranho que pareça "celebrar" um movimento iconoclasta, que cultivava a idéia de ruptura. Ficou uma sensação nostálgica de polêmica requentada, um fascínio por uma época ao alcance da mão, mas já perdida, em que as coisas "aconteciam".
Claro que a visão que nós temos dos anos 50 e 60 -uma febre de novidades relevantes, uma efervescência de idéias, grupos programáticos que dialogavam intensamente-, essa visão é retrospectiva, formada só depois que a poeira baixou. Ninguém sabe, por definição, o que está acontecendo na sua própria época.
A inexistência de movimentos articulados, de "propostas", como se dizia, pode até ser sintoma de algo positivo, de uma sociedade que se desprovincianiza. São Paulo da peça "Roda Viva" ou o Rio do show "Opinião", por exemplo, eram cidades em todos os sentidos mais restritas e acanhadas do que são hoje.
O circuito cultural era pequeno o bastante para que as atenções se concentrassem sobre poucos eventos de cada vez; havia muitos tabus a quebrar; estava disponível um público escandalizável; o gosto se cristalizava em movimentos. Em situações de transição, o provincianismo só aumenta a voltagem da corrente cultural.
Quem ainda se lembra dos festivais de música da Record guardou, com certeza, aquela atmosfera, que era a mesma no teatro, nas artes plásticas, no cinema: a cidade parava, dividida entre duas canções favoritas, cada uma representando tendências opostas, duas maneiras de conceber a evolução da cultura popular.
A partir de um certo nível, porém, de diversificação, de quantidade, já não é possível obter divisões plebiscitárias, o público se desfaz em guetos, cada um vai cuidar da própria vida. Isso é bom na medida em que possa significar mais opções, maior pluralidade, melhor qualidade, mais desenvolvimento, enfim.
É ruim porque, como toda perda de inocência, o fim de uma cultura provinciana leva embora uma confiança na própria originalidade, uma proximidade entre arte e vida, uma inventividade fácil que não voltam mais. Não existem "movimentos" porque eles não são necessários, nem mesmo possíveis.

Texto Anterior: A volta por cima
Próximo Texto: CONVICÇÃO; QUINTAL ALHEIO
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.