São Paulo, quinta-feira, 2 de janeiro de 1997
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A volta por cima

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Vida nova, realmente. Segundo li num jornal dos mais sérios, a primeira célula viva em nosso planeta data de mais ou menos 147 milhões de anos: somos adolescentes ainda, isso não é nada em termos cósmicos.
Além da idade juvenil, temos origem das mais nobres -informa a tal matéria. Não viemos de Deus nem dos macacos e sim dos dejetos que seres de outros planetas despejaram aqui -a Terra tinha tudo para parecer uma cloaca azul rolando vazia no meio das estrelas.
Depois dessa, ia perdendo o apetite de aproveitar o novo ano que se abriu para 75% dos brasileiros que tiveram seu réveillon diante do Faustão. Fui para a varanda ver a Lagoa, havia queima de fogos em vários trechos, duraram pouco e logo tudo serenou -para alegria de Títe, que detesta ruídos para ela inexplicáveis.
Pude então me concentrar num Romeo y Julieta (selo Churchill) e numa garrafa de champanhe que ganhei de escasso leitor. Olhava a noite que ficava silenciosa -como convém a uma noite. De repente, eram quase duas horas do novo ano, cortou a escuridão uma lágrima vermelha e solitária. Não fez barulho, devia ser um daqueles fogos que, antigamente, nem sei por que, chamavam de "niteroi". Consistia num ponto iluminado que saiu de algum lugar, fez elegante curva no espaço e caiu mansamente na Lagoa.
Inicialmente, procurei adivinhar quem, em tão tarda hora, tivera a idéia de romper o ano novo com material tão vagabundo e inútil. Depois, pensando melhor, achei que se tratava de um sábio que mora por aqui. Sábio -segundo imagino- é aquele que sabe das coisas. Eu também devia, mais tardo ainda, cometer alguma ação festiva, ainda que solitária.
Olhei a noite com simpatia: não vi nenhum ser extraterrestre criando mais vida para nós. Vi uma lágrima de luz subir, tremer na escuridão e cair na Lagoa. Estamos dando a volta por cima.

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