São Paulo, quinta-feira, 2 de janeiro de 1997
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Clandestinos

PEDRO SIMON

Triste contradição. Uma caixa vazia de remédios embalava um bebê morto fazia sete dias. Ele havia sobrevivido fora do útero por, apenas, outros três. Naquele corpo materno, franzino e desnutrido, a placenta teria sido algo assim como uma mortalha.
Não tinha nome. Poderia ser João, José, Pedro ou Jesus. Ou, quem sabe, Severino, aquele que, se tivesse "vingado", morreria "de violência antes dos 30, de emboscada antes dos 20 ou de fome um pouco por dia". Era mais um "zé-ninguém". Aliás, oficialmente, ele nem chegou a existir. Seus pais nada tinham, nem para o sustento da vida nem para o ritual da morte. Ele era mais um clandestino, como o cemitério que, hoje, lhe serve de abrigo.
Ninguém à volta daquela mesa de cozinha, a não ser a reportagem da Folha. "Nenhum padre. Nenhuma lágrima. Nenhuma vela. Só problemas e moscas." Aliás, aquela mesa de cozinha parecia nunca ter assistido alguém à volta.
A cova rasa sob uma cruz torta, na metade daquele cemitério clandestino já ocupada por "anjinhos", foi "trocada" por uma garrafa de cachaça. O que deveria ser o "consolo" à angústia do pai se transformou no "agrado" à benevolência do coveiro informal, que teimava nos R$ 10 para não deixar o bebê "em cima da terra".
A matéria, publicada no último 17 de novembro, exala um cheiro típico de estado de decomposição. De uma sociedade que criou um país anexo, fora do principal. São 50 milhões de brasileiros clandestinos em seu próprio país. Não têm nome oficial. São "conhecidos como". Não têm idade formal. Aparentam, mais ou menos. Não têm sobrenome. São filhos da miséria. Na manchete da Folha, "Ana, 'é só Ana', supõe ter 66 anos".
Sonham em migrar para o Brasil oficial. Querem, além de ter, ser. Mas quase nunca conseguem ultrapassar a barreira do desdém. São desiguais em tudo na vida. A mesma Folha já publicou matéria sobre a formação, no Brasil, de uma verdadeira sub-raça, fruto da desnutrição, com estatura que já se compara à dos pigmeus, com média abaixo do 1,50 m. São os chamados "gabirus". Um em cada cinco brasileiros possui altura que pode ser considerada como nanismo. A dimensão do cérebro, também abaixo das curvas de normalidade, pode acarretar uma diminuição da capacidade intelectual em até 40%.
O país oficial deve, urgentemente, caminhar além das soluções das catástrofes, das comoções das desgraças e, até, do reconforto das orações. Há um massacre do Carandiru por dia nas clínicas geriátricas e nas maternidades impregnadas por bactérias assassinas. Há, no Brasil, uma chacina da Candelária por hora, cujos necrotérios podem ser, também, as mesas das cozinhas dos milhões de miseráveis brasileiros.
O direito à cidadania não se resume à obrigação de votar. O título de eleitor não pode se constituir num passaporte para conterrâneos. A existência humana não se restringe, apenas, à conveniência das eleições. O título de cidadania há que ser hereditário.
O direito à vida ultrapassa os limites das disciplinas do curso de assistência social. Algo assim como a economia, que não se esgota no tratamento do sistema financeiro. A realidade estampada pela Folha exige uma leitura multidisciplinar, do ponto de vista dos assistentes sociais, dos economistas, dos profissionais de saúde, dos educadores, dos sociólogos, dos antropólogos, do presidente e da primeira-dama.
Por mais necessárias e bem-intencionadas que sejam as campanhas de solidariedade, por mais competentes e éticos que se mostrem os seus mentores, não são suficientes para provocar as transformações que a realidade está a impor.
O país ainda espera que se derrube o muro que separa o seu lado principal e oficial da sua porção marginalizada e clandestina. E isso só será possível com um projeto de desenvolvimento que se coloque em patamares superiores aos das discussões sobre estabilização, privatização ou reeleição.
Se o tal muro é rígido em demasia, porque sedimentado durante tantos anos de segregação política, cultural, econômica e social, que se abram passagens, em mão dupla. Que se abram frestas nas consciências, que se aprumem as cruzes, que se aprofundem as covas, que se encham as caixas de remédios, que se alimentem as mães, que sejam vigorosos os filhos, que tenham nome e sobrenome, que sejam alguém, que a mesa seja de cozinha e que o ar seja impregnado pelo perfume da vida.

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