São Paulo, quinta-feira, 9 de janeiro de 1997
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Nós, as bestas (peça-filme de lixo niilista reciclado)

DIONISIO NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ato 1 - cena 1 Cemitério da Rocinha. 5 da madrugada.
(Milhares de crianças cercam o caixão de um jovem dramaturgo encontrado no banheiro da Biblioteca Pública Municipal com um livro secreto nas mãos, perto do vômito. Alguns críticos diziam ser escargot, outros, quibe de padaria.
Em sua boca, algumas folhas manuscritas com citações e frases brilhantemente feitas misturam-se com sangue -muito sangue. Fogos de artifício iluminam a penumbra por quase um segundo).
Niilista - Dizem que foi assassinato!
Poeta - Suicídio, foi suicídio!
Cover de gênio - Os dois, foram os dois!
666 - (Largando as pernas do ator.) Ou não...
Ator - (Com um livro de técnica russa na mão direita e uma peça americana de neofaroeste na outra tentando fazer arte subversiva. Vai até o caixão, empurrando algumas crianças que dificultam sua chegada até ali. Sobe na cabeça do defunto com um sorriso de sarcasmo duvidoso.)
Cidadãos de trevas! Acabo de receber um e-mail do Olimpo! É com profunda tristeza nestes olhos que digo que Dionisios não poderá dar-nos o prazer de sua presença esta noite.
Em seu lugar, veio seu amigo Silva, que está em seu camarim se preparando para a dança que mais tarde nos ajudará a pôr fim nisso tudo já! (Vaias se misturam com aplausos, num misto de fracasso e glória.)
Linchador neoliberal - Fascista! Sexista! Neonazista! Ególatra! Devia morrer lentamente amarrado em suas próprias vísceras! Ser asfixiado com seu próprio umbigo! Onde é que já se viu! (Dois garotos mostram a bunda e se beijam na boca.) O discurso desse menino é perigoso demais! Perigoso demais!
(Saca uma arma. Gritos na multidão. As crianças enlouquecidas correm largando os terços pelo caminho. Vai até o caixão e dá sete tiros -um em cada chacra do defunto. O som dos garotos urrando mistura-se com os tambores que trazem Shiva, escoltado por 12 mestres orientais de religiões diferentes.)
Que morram as bestas! Que morram todas as bestas pretensiosas e arrogantes das Trevas!
(2 Pac Amaru, ao lado de um exército de 400 milhões de anjos, rege, ao lado do jovem Mozart, um rap cantado por River Phoenix. Shiva dança, evocando erupções, terremotos, ventanias e manifestações involuntárias de adesão ao movimento. Um velhinho observa tudo de longe, com paciência de rei.)
Repórter - ... Podemos constatar que o teatro volta à pauta das discussões entre artistas... Mas e o público? Onde raios foi parar o público!?
Beavis - Yes, yes, heh-heh-heh, as atrizes. Yes, vou comer as atrizes!
Butt-Head - Cala a boca, Beavis. Onde tem uma privada? (Não aguenta e mija sobre a peça americana de neofaroeste.) Heh-heh-heh...
Jovem autor-ator e diretor - (Cantando em seu microfone auricular.) Geração Gatorade, geração Gatorade... (Ao ouvir a risada de Butt-Head, se excita, imitando-o.) Heh-heh-heh...
(O adolescente que estava ao lado passando gelatina em sua cabeleira punk ouve e faz o mesmo. O do lado faz o mesmo, até que a multidão toda, bea(s)tificada, ri. Com exceção do ator, que entoa uma fala de Hamlet como um canastrão.)
Ator - (Arrancando sua medalha ganha no Clube dos Humildes. Com uma dignidade de bom moço.) Eu me dispo aqui, com toda minha fragilidade, com toda minha condição de mortal, de minha humildade. Me dispo do meu próprio umbigo que me liga à defesa de causas espiritualistas.
Me dispo de mim mesmo. De todas as minhas dúvidas, meus anseios, minhas angústias, minhas citações de um pós-modernisno niilista... E vou para a Clínica Lacan, descansar um pouco, mas antes, a minha missão!
(Pega sua picareta e ruma ao muro das lamentações que divide o milênio. Alguns jargões pops pichados sobre escritos xiitas fazem-no duvidar ainda mais de si mesmo, mas sua missão lhe chama mais alto. Levanta os braços e com toda a fúria necessária para derrubar muros, abandonando seu manual, inicia a derrubada do muro do beco sem saída. Dramaturgos em crise têm ataques epiléticos.)
Dramaturgo em crise - O muro é sagrado! Alguém faça alguma coisa, ele está dessacralizando o muro das lamentações!
Excluído - Moço, dá um real...
(O jovem dramaturgo morto, em seu caixão de cristal, sangra nos sete pontos baleados pelo Neoliberal. Antonio Banderas e Brad Pitt abandonam a entrevista, para fazer uma boquinha. Bela Lugosi, que já estava lá há mais tempo, compra uma briga com os novos vampiros ao impedi-los de beber do sangue podre do menino.)
Bela Lugosi - Ele é meu! Eu vi primeiro! Saiam daqui, seus urubus! Saiam!
Cena 2
Corte. Praça da Sé. Alvorada.
(Alguns corpos de mendigos tremem de frio. Um deles era um promissor bailarino.)
Enfant terrible - (Com uma página de jornal nas mãos.) O moço escreve muito mal... Não sabe do que está falando, ele mesmo disse que pegou o bonde andando... Não, o bonde já nem existe mais... E nem viu a peça... Normal que tenha ficado aborrecido, ele representa tudo o que eu meto o pau.
Monge budista - Compaixão, meu filho. Menos é mais...
Enfant terrible - Ele não entendeu nada, eu não paguei nada para ninguém, escrevi o artigo porque realmente penso assim, vestiu a carapuça à força. E, além do mais, continuamos sem público, berrando no deserto para ninguém...
Monge - (bocejando) Que horas são, hein?
Enfant terrible - Eu não disse que aqueles diretores eram os únicos, leia, digo que são raros e citei os que me tocaram de algum modo... Não estou julgando ninguém...
Monge - Você não tem que dar satisfações a ninguém.
Enfant terrible - (Rouba um girassol e entrega ao mestre. Com Ternura, dá-lhe um beijo de gratidão.) Yeah!
Monge - Circuladô de fulô.
Enfant terrible - Agora preciso seguir o meu caminho, com ou sem vosso consentimento.
(Caminha descalço e entra na catedral. Tira suas roupas e reza. Chora um pouco. Um carola passa com uma bengala nas mãos. Ele a rouba e sai. Policiais o seguem e o espancam pela sua nudez. Exposto, ele sangra. Em sua solidão, percebe que está sozinho e não pede ajuda a ninguém. Um jazz de Coltrane ecoa ao fundo. Silêncio. Lentamente sua alma vaga por aí, flutuando. O mendigo pega a folha de jornal e se cobre.) Fusão.
Ato 2
Lagoa Rodrigo de Freitas. Manhã. Um século depois.
(Os vampiros já não estavam mais ali, de noite voltariam. O século 19 aparece casado com Jasper Johns. Entendidos e mal-entendidos fazem um michê na porta principal. Sento ao meu lado e converso comigo mesmo.)
Dionisio - Já te chamaram de mutação genética...
Dionisio - Se Antunes, Gerald e Zé formassem um triângulo amoroso, qual deles ficaria grávido? E quem seria o pai?
Dionisio - Quando você fracassar, quem estará ao teu lado?
Dionisio - Quer ouvir uma fábula oriental?
Dionisio - Só quero fazer as minhas peças, quem quiser gritar que grite... Não preciso de votos de ninguém.
Dionisio - Tão querendo prender o teu rabo...
Dionisio - Podem elogiar e podem criticar à vontade, estou fazendo o meu trabalho...
Dionisio - Vai fundo...
Dionisio - Você já vai?
Dionisio - Vou ouvir um concerto para piano e orquestra...
Dionisio - Manda um abraço para Renata Jesion, ela é linda...
(Pego a minha máscara e jogo no lixo. Ajudo Dionisio a fazer o mesmo. Rezamos a última prece do último dia em que seremos inúteis. Pego um ônibus e vou para a zona norte participar de uma luta de gangues. Nunca mais deixaremos nos fazer mal nenhum.
Quanto ao jovem dramaturgo que jazia no século passado, dizem que três dias depois foi visto comprando os direitos da exibição de um filme pornô francês dirigido por Marco Antônio Braz. E as bestas agarradas pelo menino beijam o câncer dos lábios da miss e fazem pedidos às estrelas (de)cadentes. "Geração Coca-Cola" toca no último volume. Essa história não tem fim.)

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