São Paulo, sexta-feira, 10 de janeiro de 1997
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Bastide, dos negros aos franceses

ANTONIO CANDIDO

Este livro foi publicado sem data nos anos de 1940 na Coleção Caderno Azul, dirigida por Sérgio Milliet, de Plácido e Silva e Luis Martins para uma editora paranaense, Guaíra, que editou muitos textos interessantes. Mas, como era frequente no tempo, com pouca exigência de fatura, desde o papel de má qualidade e a falta de índice até a péssima revisão. Antes deste, Roger Bastide publicara na mesma coleção "Psicanálise do Cafuné", em que se encontram alguns dos seus escritos mais importantes, como "O Mito do Aleijadinho" e "Sociologia do Barroco no Brasil".
O meu exemplar de "Poetas do Brasil" tem uma dedicatória que resume a obra: "Para Antonio Candido, este livrinho que passa dos Negros aos Franceses, unindo-os por meio do Brasil".
Bastide era um intelectual extremamente versátil e curioso, aberto para novas experiências e dotado de uma capacidade quase inverossímil de trabalho. Trabalhava praticamente sem parar e transformava tudo em escrita. O Brasil foi para ele uma fonte inesgotável de sugestão. Nos 16 anos que passou aqui (com algumas interrupções), acumulou sobre o país um acervo de informações que entrava pela arte e a literatura, extravasando dos interesses profissionais de sociólogo especializado na vida religiosa do negro. Em 1940 nos deu um curso de sociologia da arte, cujo segundo semestre foi dedicado ao barroco, destacando o caso brasileiro. E durante a guerra impôs a si mesmo a tarefa de escrever semanalmente sobre temas locais, a fim de, como dizia, manter viva a presença da França por meio do interesse de um francês pela nossa realidade. Eram artigos para o extinto "Diário de São Paulo", que eu traduzia e tratavam dos assuntos mais diversos, sempre com uma acuidade de escrita que procurava unir precisão e fantasia, como foi sempre a sua maneira, que o leitor poderá verificar neste livro.
Nessa atividade de articulista havia um elemento, digamos, diplomático, que o levava a praticar o que na ocasião se chamava, em matéria de política continental americana, a "boa vizinhança", mas que correspondia também à sua concepção teórica. Interessado em manter a presença cultural francesa (absolutamente dominante aqui naquele tempo), era bastante indulgente e procurava verificar mais do que avaliar, e isso o eximia de apontar fraquezas e de emitir juízos eventualmente severos. Mais de uma vez o alertei a respeito, mas ele respondia, sempre com vivacidade e firmeza: "Eu não faço juízos de valor, faço juízos de realidade". Assim foi que certa vez discordei respeitosamente da sua avaliação a meu ver favorável demais de Cruz e Sousa, situado por ele no mesmo nível que Mallarmé e Stefan George num artigo famoso, recolhido depois no livro "Poesia Afro-brasileira", que me deu com a seguinte dedicatória: "A Antonio Candido, esperando que não fique com muita raiva de Cruz e Sousa". Mas cerca de 20 anos depois me disse: "Você tinha razão quanto a Cruz e Sousa"...
Digo essas coisas para ajudar a compreender a tonalidade crítica deste livro, que quase invariavelmente visa mais à verificação do que à avaliação, como se Roger Bastide não se preocupasse muito em distinguir o ruim do bom. É que para ele, crítico, mas sobretudo sociólogo, o texto é um feixe de significados e de sinais que, se forem válidos, justificam o interesse.
Essa concepção (presente em toda a sua atividade crítica) o leva a procurar os ângulos que permitam a visão justa, mas simpática, o que se pode ver, por exemplo, quando analisa a presença da "sociedade" (mundana) no âmbito da sociedade de São Paulo, a propósito da poesia de Guilherme de Almeida.
Isso posto, convém assinalar a sua grande imaginação crítica, que faz o texto "render" ao máximo como fonte de significados, quer nas visões panorâmicas (no primeiro e no último ensaio), quer nas análises particulares (nos ensaios intermediários). Nestes, não escapará ao leitor o interesse acentuado pela poesia religiosa, a de Jorge de Lima e a de Murilo Mendes, o que se explica pelo seu campo de estudos. Antes de vir para o Brasil, em 1938, ele já publicara dois livros de sociologia religiosa e, aqui, estudou a fundo os cultos afro-brasileiros, objeto de sua obra magna: "Les Réligions Africaines du Brésil". A propósito, leia-se um trecho da "Introdução" a "Poesia Afro-brasileira", que ajuda a perceber melhor não apenas esta preocupação, mas muito de seu método crítico:
"Ora, escrever é trazer das profundezas do eu todos os tesouros escondidos, todas as flores noturnas do subconsciente e é também, consequentemente, acordar todos os demônios e os deuses ocultos, é libertar os antepassados recalcados. Criei então um método para procurar através da obra escrita os complexos religiosos que muitos nem mesmo sonhavam possuir. Assim escrevi na França estudos sobre a influência tão sutil, mas reconhecível, do judaísmo em Proust, sobre a influência da infância protestante em Gide, sobre o catolicismo de Mauriac".
Para descobrir esses lençóis ocultos, procura o que se poderia chamar as melhores "entradas" no texto. Mas de um modo aparentemente espontâneo, como se estivesse dizendo coisas que todos poderiam dizer -marca de urbanidade crítica própria da tradição francesa, que procura (ou melhor, procurava) disfarçar ao máximo a erudição, dissolvendo na tonalidade ensaística o peso da informação e a abstração dos princípios teóricos.
Veja-se, por exemplo, o realce que dá ao papel do ouvido em comparação com a vista na poesia de Manuel Bandeira, motivando a abolição do visual que leva à interiorização do mundo e, afinal, à sua reconquista por meio da escolha de certos apoios, que ele chama de "balaustradas". No mesmo sentido destaca o papel da cidade de São Paulo na poesia de Mário de Andrade, tanto como apoio da poesia exterior, quanto para a que considera subjetiva, mas não intimista. Outra "entrada" é o uso que faz do ritmo como traço privilegiado para entender a poesia de Guilherme de Almeida. E assim por diante.
Além deste livro, que agora se reedita, Roger Bastide é autor de muitas outras contribuições para a crítica literária, sobretudo no campo da literatura brasileira. Sem falar na influência que exerceu nas idéias estéticas de seus alunos, entre os quais Gilda de Mello e Souza e Lourival Gomes Machado, que aprendeu em parte com ele a maneira de encarar o nosso barroco. Eu próprio lhe devo muito em matéria de orientação crítica, e é preciso ainda lembrar as trocas de idéias que teve com intelectuais do porte de Mário de Andrade e Sérgio Milliet.
Se tivesse que destacar um ensaio de crítica literária de Roger Bastide, eu escolheria "Machado de Assis Paisagista", publicado na "Revista do Brasil" (3ª fase), número 29, de novembro de 1940. É uma análise magistral e inovadora que a meu ver poderia ter reorientado naquela altura os estudos sobre o nosso maior escritor, trazendo-os para o ângulo propriamente literário e, assim, completando os níveis linguístico, social, psicológico e sobretudo biográfico, que predominavam. No entanto, ele passou despercebido e até hoje não recebeu a atenção dos machadianos. Esperemos que a publicação oportuna de "Poetas do Brasil" anime os nossos jovens estudiosos a abordarem a obra de Roger Bastide como crítico da literatura brasileira, dando-lhe a importância que a sua obra de sociólogo eclipsou.

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