São Paulo, sexta-feira, 10 de janeiro de 1997
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Bouquet de poetas: Manuel Bandeira

ROGER BASTIDE

Tem-se afirmado frequentemente que Manuel Bandeira começou pelo parnasianismo. No entanto, se cairá num engano grosseiro, julgando-se que o Parnaso foi para ele uma estética. Foi muito mais uma ética, ou, se se prefere, uma primeira solução para um drama interior.
O parnasiano é um homem para quem o mundo exterior existe. Sua arte se parece mais com a escultura do que com a música, e seus versos têm a dureza do mármore, a cintilação das pedras preciosas. O que ele quer tentar captar, para inscrever num poema, não é a sutileza dos sentimentos, mas as cores e as linhas, os volumes e os planos. Sua poesia tende para a imagem, até mesmo para a pura descrição, nos menos dotados dentre eles.
Ora, desde sua primeira coletânea de versos, Manuel Bandeira destrói o mundo exterior. Sem dúvida existem paisagens em seus poemas, mas são paisagens de outono, crepúsculos que terminam em noites, manhãs leves que não chegam ao Sol em plenitude. O que ainda prefere a estas paisagens diluídas são os longos dias de chuva. Enfim, este parnasiano é um inimigo da cor. Faz tudo se tornar grisalho e a única tinta que parece lhe agradar é o cinza, ou a fumaça que sobe de um cigarro.
O mundo exterior existe, mas Manuel Bandeira não o apreende pela vista, porque a vista é, de todos os sentidos, o mais objetivo, o mais representativo, aquele que mais nos faz sair de nosso mundo interior. Ele o apreende antes pelo ouvido, isto é, como um conjunto de músicas. Por conseguinte, pelo lado mais subjetivo que se possa encontrar. Talvez haja nisso uma consequência da educação do poeta, que parece ter sido uma educação principalmente maternal. Em todos os murmúrios, todos os suspiros, em todas as músicas que sobem das coisas e vêm ferir o ouvido, ouve de novo, com efeito, as "berceuses" tristes, os rondós, as canções que lhe acalentaram a infância: "Talvez ouvi, quando criança,/ Cantigas tristes que cantou à minha cama./ Talvez por isso eu me comova àquela mágoa/ Talvez por isso eu me comova tanto à mágoa/ Do teu rumor, murmúrio d'água..." ("Murmúrio d'Água").
Em todo caso, evidentemente, é pelo som que o poeta retém o mundo exterior. Por um sentido menos representativo do que a vista, portanto. Pode-se, porém, ir mais longe ainda. Ele destaca estes sons de todo suporte material, dos objetos que lhes dão nascimento, para apreendê-los como vibrações puras e não como significações objetivas. Não sei se tem sido notada a importância do telefone na poesia de Manuel Bandeira. Tal importância é simbólica. No telefone, a voz está dissociada da pessoa que fala na outra extremidade do fio, é uma realidade independente, isolada de toda representação visual. Assim, o aparelho telefônico, nas mãos de Manuel Bandeira, é uma espécie de máquina infernal destinada a destruir o mundo exterior para não deixar subsistir senão o que ele tem de mais subjetivo: a música. O telefone é antiparnasiano.
O que interessa, pois, ao poeta, desde seu primeiro livro de versos, não é a natureza, mas sua alma. Sua sensibilidade o torna infinitamente mais próximo dos simbolistas do que dos parnasianos. E pode-se pensar em uma espécie de contradição entre as tendências profundas do autor e a técnica com a qual deseja realizá-las.
Na verdade, não há contradição. De que forma nos aparece esta alma do poeta em "A Cinza das Horas" (1917)? Aparece-nos singularmente caótica e dividida. Cada vez e ao mesmo tempo, é dionisíaca e esquiva, embriagada pela vida tropical e ávida de silêncio, de doçura, de ternura. Em uma palavra, o que lhe falta é a ossatura de uma vontade. Certamente, nosso escritor não quer ser um desertor, quer, ao contrário, saborear freneticamente todos os prazeres do vasto mundo; nada parece suficiente para lhe apaziguar a sede. Daí poemas como "À Beira d'Água" ou "Plenitude". Mas esses poemas também denunciam esta ausência de vontade de que falei: é um dionisíaco sem nada de nietzscheano, que se abandona em vez de dominar. Quer aproveitar avidamente a vida, mas deseja que a própria vida lhe venha trazer o prazer já preparado, pois não vai procurá-lo. Compara-se à folha morta levada pela torrente e, como a folha morta, espera ser também arrancado e levado pela correnteza tumultuária... Mas tem medo. Herdou de sua mãe, de sua mãe que tinha medo de relâmpagos, de telegramas, do escuro, uma estranha angústia diante da vida, e por isso tem um coração contraditório.

Trecho do livro "Poetas do Brasil"

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