São Paulo, sexta-feira, 10 de janeiro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A história paralela

SYLVIA CAIUBY NOVAES

Este segundo número de "Cadernos de Antropologia e Imagem", depois do sucesso do número 1, que teve como tema central os primeiros contatos entre a antropologia e o cinema, focaliza a relação entre a antropologia e a fotografia, desde meados do século passado. "São textos que discutem tanto suas histórias paralelas quanto os diferentes usos da fotografia no campo da antropologia: seja enquanto instrumento para a análise, seja como instigadora de reflexões teóricas ou, ainda, como elemento fundamental da trama relacional observador/observado na pesquisa de campo", diz a apresentação de Clarice Ehlers Peixoto e Patrícia Monte-Mór, duas antropólogas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro que não têm medido esforços para promover a antropologia visual no Brasil.
Seguindo a proposta apresentada no primeiro número, este também traz, na primeira parte da revista, tradução de artigos clássicos e ainda não disponíveis em português. "Antropologia e Fotografia", de Elizabeth Edwards, é o artigo de introdução à coletânea por ela organizada: "Anthropology and Photography", 1860-1920. Nele estão em discussão a fotografia como fonte documental, as relações entre a sensibilidade estética e o rigor científico, a análise visual por oposição à mera interpretação e o uso cientificista da foto nos estudos antropométricos. Mais do que discutir estes temas, a introdução de Edwards aponta para a importância da obra, por cuja publicação os editores brasileiros não se arrependeriam.
O artigo de Christopher Pinney, publicado originalmente nesta coletânea de Edwards, procura mostrar que os poderes de representação da antropologia e da fotografia advêm de procedimentos semióticos quase idênticos. Há uma história paralela da antropologia e da fotografia, marcada tanto pela busca da visibilidade e escrutínio, como pela desejada invisibilidade daquele que o produz -seja o relato antropológico, seja a fotografia-, mas, simultaneamente, pela presença de ambos em seus produtos. Esta autopresença se dá a perceber pelo estilo do autor ou, nas fotos de antropólogos, por elementos que denunciam a sua presença e a de sua cultura. Como mostra Pinney, o imediatismo espacial e a anterioridade temporal que marcam a fotografia talvez possam ser vistos como o precursor invertido da busca de reconstituição de um presente etnográfico nas monografias pós-malinowskianas. O paralelismo entre a antropologia e a fotografia chega, nos dias de hoje, a um questionamento de suas certezas e possibilidades. A antropologia descobre sua condição calcada num visualismo retórico, ao mesmo tempo que a fotografia acaba por se descobrir como "foto-logia", baseada na linguagem ou, mais corretamente, na "foto-gramática".
Em "Figuras do Desconhecido" Sylvain Maresca mostra que nos retratos fotográficos da segunda metade do século passado a identidade dos modelos não resistiu à ação do tempo em função da própria necessidade de a fotografia afirmar-se como arte. São os modelos anônimos que "emprestam seus traços à imagem nascida da imaginação do artista fotógrafo", tal como ocorrera por anos com a pintura. Também os modelos de Nadar não se reconheciam nos seus próprios retratos, prova das qualidades do artista fotógrafo.
Se desde a Renascença até bem recentemente a semelhança com o referente era algo que desqualificava a obra artística, deixando a fotografia em situação de inferioridade (porque mera cópia), a imagem moderna é criada a partir do mito da semelhança absoluta. Maresca não cita Warhol, mas ele é quem leva a arte ao hiperrealismo e a fotografia a esta situação paradoxal de coroamento da abstração, "pois ela é a semelhança em si, a imitação separada daquilo que ela imita, uma idéia perfeita da imitação". Esta é a "ponte" mais interessante do artigo de Maresca. "A arte se encerra sobre si mesma, seja negando, seja sacralizando toda referência", daí tantos retratos anônimos num momento em que a fotografia precisava se afirmar não como técnica, mas como arte.
Encerrando esta primeira parte da revista, um artigo de Christopher Phillips mostra a fotografia como modo de apreender a nova vida urbana, frenética e em escala colossal, que começa a se delinear nos anos 20 deste século. Montagem, velocidade e objetividade são conceitos comuns tanto à fotografia como a este novo espaço urbano que fascina e amedronta, e que serão temas de fotógrafos dos anos 20 que se debruçam sobre a cidade, com o objetivo de pensá-la e representá-la.
A segunda parte deste número traz artigos que são fruto de pesquisas que se utilizam da fotografia não apenas como instrumento, mas também como objeto de análise. Howard Becker e Eduardo Viveiros de Castro mostram como os meios visuais podem contribuir para um melhor entendimento do mundo social, principalmente daqueles aspectos que dificilmente podem ser traduzidos pela linguagem escrita. "Mentiras e verdades do álbum de fotos de família", de Irene Jonas, retraça, por meio destes álbuns, o modo como as famílias se representam simbolicamente e como estas representações vêm se alterando no curso da história. Também focado na família, mas numa perspectiva mais "sombria", é o artigo de Maria Letícia Mazzuchi Ferreira, sobre a presença da imagem no universo da velhice.
"A fotografia nas festas populares", de Hervé Jézéquel, é um artigo interessante, que mostra a presença da fotografia nas feiras de diversão, como possibilidade de as pessoas estabelecerem uma relação com seu próprio corpo (os espelhos ainda não faziam parte da vida cotidiana), assim como difundir a grande atração destas feiras: corpos exóticos e monstruosos, como os de anões, gigantes, albinos, mulheres barbadas etc.
Mas a revista tem mais: resenhas de obras clássicas, como "Balinese Character", de Gregory Bateson e Margaret Mead, o resultado de um trabalho publicado em 1942, a partir de mais de 25 mil, fotos e cerca de 22 mil pés de película. Uma bela resenha de Miriam Moreira Leite, sobre quatro livros com farta iconografia sobre a população negra no Brasil, publicados por ocasião do 1º centenário da Abolição da Escravatura. E, por fim, uma sessão de resenhas de filmes e vídeos, que procura tornar disponível o acervo do Núcleo de Antropologia e Imagem da UERJ.
Uma bela revista, com reproduções em sua maioria de boa qualidade, e que mostram o quanto as ciências humanas podem se beneficiar desta proximidade com a linguagem visual.

Texto Anterior: Um quilombo moderno
Próximo Texto: Terra de conflitos
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.