São Paulo, sexta-feira, 10 de janeiro de 1997
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Um quilombo moderno

ANTONIO S. A. GUIMARÃES

ANTONIO S. GUIMARÃES
Chega finalmente às livrarias o "Cafundó", de Carlos Vogt, linguista, e Peter Fry, antropólogo, com a colaboração de Robert Slenes, historiador. "Finalmente", porque o Cafundó, a comunidade negra de Salto de Pirapora, São Paulo, que mantém em uso uma "língua africana", a "cupópia" ou "falange", foi o primeiro "quilombo moderno" a ser "descoberto" no Brasil de nossos dias. Datam de 1978 os primeiros escritos dos autores sobre o Cafundó, e o livro -este espaço verbal privilegiado de consagração do saber- só aparece agora, 18 anos depois. Vogt e Fry procuram desvendar o que são estes "quilombos", o que foi esta "descoberta" ou, na palavra deles próprios, "o que é ser africano no Brasil? E, abusando um pouco da generalização, ... o que é ser brasileiro?".
É um livro que procura desfazer equívocos de várias ordens. Da ordem da consagração intelectual e da recriação do mundo pelo verbo dos cientistas sociais e dos jornalistas; da ordem da interpretação da cultura e do significado das línguas, rituais ou prosaicas; da ordem política da disputa dos interesses sociais e econômicos. O modo de fazê-lo é apresentar os resultados, as análises e as interpretações mediante a narração do desenvolvimento da pesquisa empírica que os autores desenvolveram de 1978 a 1981 em Cafundó e em outras "terras de negro", pelo Sudeste do país afora. Ao narrar a pesquisa e seus procedimentos, os autores desvendam não apenas a sua própria metodologia, mas a constelação de interesses em que eles e o Cafundó sempre estiveram envolvidos e, assim, a interpretação é posta sob o fogo cruzado da crítica e da autocrítica.
Vogt e Fry têm um partido muito claro. As culturas e as línguas são produtos da vida social, de sua transformação e dos seus compromissos. Não existem pureza nem essência no mundo da cultura, mas apenas um exercício constante de reinvenção de significados e valores. E, no entanto, tal reinvenção e mistura cotidianas, que são a vida das culturas, se fazem -de modo apenas aparentemente paradoxal- a partir da busca da pureza e da reinvenção do passado por indivíduos que procuram demarcar diacriticamente as suas identidades sociais para melhor defender seus interesses. Por isso, buscar essências e purezas por intermédio da pesquisa sociológica é como tentar fazer passar por ciência o que é mera ideologia dos indivíduos.
O Cafundó é, para os autores, a África no Brasil. Formado pela doação de terras a duas escravas libertas por um senhor -uma delas Antônia, sua companheira nem tanto secreta, mãe de dois filhos seus, objeto do ciúme de sua mulher branca-, a comunidade formou-se nas franjas da grande propriedade rural, sistematicamente roubada em suas terras pelo avanço do capitalismo agrário e marcada pela pobreza e pela discriminação racial. A sobrevivência do povo negro do Cafundó, na verdade duas parentelas -os Almeida Caetano e os Pires Cardoso-, se deu, por um lado, por meio da invenção da pureza banto e da malandragem dos primeiros e, por outro, pela retidão moral e pela integração social dos segundos.
Os primeiros encontraram na "língua africana" a identidade ancestral e "estrangeira" que, substituindo a ausência de documentos de propriedade, lhes permitiu reivindicar a validade da doação da terra comunitária. Estes fizeram também da "cupópia" a linguagem secreta de expressão da revolta e de exercício da malandragem, praticaram o catolicismo, enquanto mantinham os seus e aceitavam outros deuses. Os segundos fizeram do trabalho subordinado e da religião evangélica o caminho da integração na sociedade brasileira, negociando com os poderosos a "venda" de suas terras. A pobreza e a discriminação os uniu e os irmanou, até que a "descoberta" da moderna ciência social converteu a todos, negros e brancos, em orgulhosos conhecedores e praticantes da "cupópia", uma invenção brasileira da África.
Os autores garimparam algumas verdades nos livros, outras nos cartórios e ainda outras no campo, pela observação e pela conversa com os habitantes do Cafundó e de suas redondezas. O livro tem, ao todo, nove capítulos, três apêndices -mapas geográfico, genealógico e linguístico-, um glossário e um encarte de fotos, além de rica bibliografia. A narrativa começa com a história da "descoberta" do Cafundó, posta em equivalência teórica à descoberta dos africanos no Brasil. Uma história recuada aos dias de Sílvio Romero ("temos a África em nossas cozinhas, como a América em nossas selvas e a Europa em nossos salões") e à viagem etnográfica de Nina Rodrigues, Arthur Ramos e Edison Carneiro pelos terreiros nagôs da Bahia. "É como se Nina Rodrigues", dizem os autores, "utilizasse os princípios de pureza racial para subvertê-los pela sua aplicação extrema e contrária: o elogio da pureza negra". A língua africana do Cafundó, por seu turno, será também posta em homologia a outras marcas diacríticas da africanidade no Brasil: "Ao que tudo indica, o seu papel social está relacionado com o que se pode chamar 'uso ritual', no mesmo sentido em que outras manifestações culturais de origem africana continuaram a existir no Brasil em várias comunidades negras (candomblé, congo, capoeira etc.)".
Estabelecido o papel mítico da "pureza" na reafirmação ritual das identidades, os autores se movem, no segundo capítulo, para contar a tradição oral das origens do Cafundó: a doação de terras por senhores a duas escravas. Tradição que tem pouco de mitológica, como comprova o cuidadoso trabalho de Robert Slenes, garimpando, com os autores, os cartórios e os arquivos da região de Sorocaba. E mais, descobrem, por exemplo, que as doações de terra e a manumissão dos escravos nos testamentos de senhores foram mais usuais do que a historiografia usualmente admitia, principalmente por parte dos senhores que morriam sem herdeiros ou dos que queriam proteger as amantes escravas e os filhos bastardos. Desvendaram também a lógica das doações: um sistema de prêmios e incentivos à obediência escrava e de transformação de ex-escravos em dependentes. E descobriram famílias escravas em quantidades e proporções inesperadas, documentando a ampla formação de parentelas negras, vivendo juntas, ainda sob a escravidão.
Os cinco capítulos seguintes são destinados a investigar a formação e as razões da permanência da "cupópia" entre os negros do Cafundó. As chaves para entendê-las são a estrutura social do grupo que a pratica e as relações sociais que ele mantém com os grupos que a desprezam e temem. Por um lado, dizem os autores, a "cupópia" é um mecanismo de compensação ao baixo status e de resgate da dignidade coletiva. "A lógica de exclusão opera no sentido de atribuição de baixo status, acompanhado pelo predicado de perigo e, consequentemente, de poder." Por outro, é um segredo revelado, usado não apenas por um grupo, para demarcar uma identidade, mas também por alianças, para proteger os falantes em situações humilhantes ou vexatórias. E se perguntam os autores, numa poesia impecável: "Mas não é exatamente este o segredo de todos os segredos? Aquele ponto em que, embora feito de silêncios, o segredo não pode ser ele mesmo silencioso, sob pena de não ser segredo, mas apenas silêncio?". Os autores nos ensinam que a única razão para que os Almeida Caetano falassem a "cupópia" era o fato de os Pires Cardoso a desprezarem, ainda que, perante a comunidade branca que os cercava, o conhecimento da língua estrangeira fosse também o reconhecimento de certo prestígio, prestígio este que se amplia quando o Cafundó vira notícia nacional.
Sua conclusão mais geral, quanto à origem, é a de que "os 'africanismos linguísticos' no Brasil, antes de indicarem um caminho de procedência exclusiva, indicam sobretudo a construção ideológica de uma África miticamente homogênea e, por mais fantástica que possa parecer, brasileira".
Quanto à permanência, no capítulo 8, "Rios de Cristal", os autores vão se debruçar sobre outras "línguas africanas" no Brasil para descobrir seja a imensa solidão linguística dos falantes, seja a sua transformação em dialeto municipal, como em Patrocínio, onde a "calunga" é falada igualmente por negros e brancos. É exemplar a conclusão de Vogt e Fry, construída também a partir de uma equivalência de significados: "No Cafundó, a 'língua africana' talvez ainda não tenha virado samba, nem feijoada, nem umbanda, isto é, talvez não tenha sido ainda apropriada pelos 'brancos'±".
Esta permanência por diferenciação e não por integração vai ser o objeto da reflexão dos autores no capítulo de conclusão. Até que ponto podem os cientistas sociais, que desvendaram a invenção das tradições para compreender criticamente os interesses e os valores sociais escondidos e legitimados pelas instituições dominantes, assistir impassíveis ou participar da invenção contemporânea da história dos oprimidos? Até que ponto podem estes inimigos do "essencialismo" e da "naturalização" do social assistir ou participar da construção das novas essências, das novas purezas e das novas raças dos oprimidos?
"Cafundó" é um livro sobre o Brasil atual, um livro sobre a política das identidades negras.

Antonio Sérgio Alfredo Guimarães é professor do departamento de sociologia da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e pesquisador visitante no Núcleo de Estudos da Violência da USP.

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