São Paulo, sexta-feira, 10 de janeiro de 1997
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Um balé de idéias

SOFIA CAVALCANTE

R ecentemente lançado, numa tradução bem cuidada, "A Alma e a Dança" é um texto "filosófico" que fascina pela própria forma. Não se trata de uma reflexão ordinária. Pode-se pensar na ficção de uma reflexão, que possui a característica especial de repercutir em sua forma o objeto que investiga -a dança.
Numa carta endereçada a Louis Séchan, estudioso que dedicou um capítulo de seu livro "La Danse Grecque Antique" ao diálogo, Valéry declarou sua intenção de fazer da obra uma espécie de balé, em que a Idéia e a Imagem fossem alternadamente os corifeus, seguindo nesse revezamento até sua união na vertigem final. Em sua confecção contribuíram elementos diversos, introduzidos livremente para dar variedade à cena: observações de figuras de decomposição do andar e do salto, extraídas de um livro do dr. Marey, lembranças de balés e, sobretudo, as próprias "idéias", que neste diálogo são consideradas um meio e não um fim em si mesmas, como ocorreria num verdadeiro escrito filosófico.
O texto imita a maneira de filosofar de Platão, tomando emprestados três personagens do "Banquete", subtitulado "Do Amor": Sócrates, Erixímaco e Fedro.
O cenário também remete a esse diálogo. Os três discutem sobre dança enquanto assistem um grupo de bailarinas após um banquete. Nem grega, nem contemporânea à publicação do texto, a dança que os inspira, a deduzir pela descrição dos movimentos, é o balé do século 19, que possui as características que inspiraram a Mallarmé as notáveis reflexões das "Divagations", dentre as quais se destaca a que permeia a construção de Valéry: "O julgamento, ou axioma, a se afirmar em matéria de balé! A saber, que a dançarina não é uma mulher que dança, por esses motivos justapostos, que não é uma mulher, mas uma metáfora, resumindo um dos aspectos elementares de nossa forma, gládio, taça, flor etc., e que não dança, sugerindo pelo prodígio de recolhimento e impulso, com uma escrita corporal, o que necessitaria parágrafos em prosa dialogada, assim como descritiva, para exprimir na redação: poema despojado de todo instrumento do escriba".
O axioma de Mallarmé se desdobra num raciocínio que oscila entre as filosofias opostas de Nietzsche e Platão, e termina por operar uma espécie de síntese dessas concepções. A idéia da negação da mulher pela dança é desenvolvida a partir de argumentos que tocam a construção nietzscheana do êxtase dionisíaco: a dança é uma embriaguês que cura o tédio de viver da "consideração fria, exata, razoável, da vida humana tal qual é". No ato de dançar, a bailarina desliga-se de si mesma por meio de uma série de metamorfoses de maneira semelhante a uma chama, e o corpo se liberta, "possuído por completo pelo espírito da mentira, e da música que é mentira, e ébrio com a negação de qualquer realidade". Mas esse desligamento nunca é absoluto: em sua transformação a dançarina volta continuamente a si mesma: ao chão depois de um salto, ao repouso depois de um turbilhão de giros. Nesse movimento a dança, que é uma atividade do corpo, assemelha-se à filosofia e às outras atividades da alma: "Assim como abandonamos nossa alma a muitas coisas para as quais ela não é feita, e lhe exigimos que nos esclareça, que profetize, que adivinhe o futuro, encarregando-a até de descobrir Deus -assim o corpo que ali está quer atingir uma posse completa de si mesmo, e um grau sobrenatural de glória!... Mas acontece-lhe o mesmo que com a alma, para a qual o Deus, e a sabedoria, e a profundeza que lhe são exigidas não são e não podem ser senão momentos, vislumbres, fragmentos de um tempo estrangeiro, saltos desesperados para além de sua forma...".
A conclusão platônica do raciocínio, que se completa com o desmaio e a volta da bailarina a si mesma no final da dança, confirma o projeto do diálogo enquanto balé de idéias, cujo movimento revela o processo de criação de um estado extraordinário, comum à dança, à poesia e à filosofia.

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