São Paulo, sexta-feira, 10 de janeiro de 1997
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Juízes, esses desconhecidos

SÉRGIO ADORNO

Os juízes, suas atividades e sua organização constituem o objeto deste livro. A reflexão de Dalmo Dallari é oportuna e não ocorre por acaso. Em distintas sociedades do mundo ocidental, os juízes vêm adquirindo um protagonismo político que parece contrastar resolutamente com a imagem de neutralidade legada de nossas tradições liberais do moderno Estado de direito. Não poucas razões vêm contribuindo para que esses protagonistas compareçam cada vez mais à arena social e política, muitas das quais inclusive abordadas com propriedade pelo autor.
Naquelas sociedades em que, após pelo menos um século de intensas lutas sociais, a democracia se consolidou como modelo de organização e exercício do poder político e nas quais a justiça se converteu em garantia de equidade social e jurídica -como nos EUA, no Canadá e não poucos países europeus-, os intensos, profundos, complexos e ainda pouco conhecidos rumos que o processo de globalização impõe ao mercado e aos Estados nacionais têm alterado substantivamente o padrão convencional de conflitos sociais e de litigiosidade nas relações sociais e intersubjetivas.
No bojo desse processo, as novas relações de poder entre empresas e corporações, o futuro do trabalho e dos direitos dos trabalhadores, os direitos inerentes aos grupos sociais que reivindicam o reconhecimento de identidades próprias (como as mulheres, os grupos étnicos e de afirmação sexual) ou que reivindicam lugar determinado no interior das sociedades (como os migrantes, refugiados e apátridas), a delicada problemática dos direitos humanos numa perspectiva cada vez mais internacionalizada têm provocado a emergência de novas questões e desafios para a Justiça e seus atores principais, os magistrados. Naquelas sociedades em que a democracia nem sequer chegou a se consolidar e ainda persistem graves problemas de distribuição de justiça e de flagrantes injustiças sociais, os desafios são ainda mais difíceis de serem enfrentados.
Tudo sugere, por conseguinte, que nossas tradições modernas de Justiça, de aparelho judiciário e de função jurisdicional envelheceram. É este envelhecimento, com seus dilemas, impasses, ambiguidades, hesitações, avanços e recuos, que move a reflexão de Dalmo Dallari em torno dos juízes e seu poder na contemporaneidade, tal como esta temporalidade é vivida como experiência social em distintas sociedades.
Logo de início, o livro revela um mérito, certamente cunhado pelos longos anos de sua prestigiada docência numa das mais importantes escolas de direito deste país. O livro consegue sumariar com clareza e objetividade todas as grandes e principais questões que mobilizam a opinião pública informada, os especialistas no campo jurídico e o que de mais avançado há no domínio da sociologia jurídica e do poder. E, tudo isso, sem abdicar do rigor e da profundidade, sem ceder às facilidades que um tratamento desta ordem inevitavelmente poderia conduzir, sem fazer concessões aos apelos corporativistas. Há igualmente a paleta do pesquisador que se entretém no exame minucioso de cada questão, que contrasta pontos de vista e contrapõe argumentos, que se mostra atualizado por meio do diálogo que mantém com o debate intelectual e político nacional e internacional. Enfim, uma leitura tanto para especialistas quanto para aqueles interessados em compreender o que se passa na atualidade no mundo da Justiça e do Poder Judiciário.
Preocupado com a participação da magistratura na implantação e preservação do sistema democrático nas sociedades contemporâneas e, em especial, com as deficiências e distorções que impedem o Poder Judiciário brasileiro de cumprir suas funções constitucionais, o professor Dallari produz instigante reflexão a respeito do lugar desse poder na clássica distribuição de poderes, modernamente inventada por Montesquieu, cujos fundamentos, porém, se encontram na antiguidade clássica grega, mais propriamente na filosofia política de Platão e Aristóteles. Em algumas sociedades contemporâneas -como é o caso do Brasil-, a hipertrofia do Poder Executivo é acompanhada de uma retração das funções tradicionais do Poder Legislativo, entre as quais a de participar ativamente na formulação das políticas públicas e na fixação das prioridades governamentais, atribuições concebidas como se fossem prerrogativas exclusivas do Poder Executivo, que avoca para si inclusive capacidade legislante.
Esses desdobramentos contemporâneos afetam sobremodo o tradicional equilíbrio entre os poderes e não podem deixar de produzir suas consequências sobre o Poder Judiciário, cuja atividade acaba praticamente concentrada em torno da averiguação da legalidade da intensa atividade normativa, relegando a problemática da justiça para um segundo plano. De fato, como sobejamente demonstra o professor Dallari, as questões jurídicas então decorrentes se tornam cada vez mais complexas, demandando saber altamente especializado e qualificado, o que contribui para reduzir a delicada problemática da distribuição da justiça a uma problemática técnica, de manipulação de procedimentos, frequentemente respaldados na processualística.
Trata-se, por conseguinte, de uma perspectiva que contemporaneamente se apresenta como distante do ideal aristotélico de justiça, fundado no princípio da "distribuição a cada um do que lhe é devido". Daí os conflitos quase insolúveis entre legalidade e justiça. Daí igualmente o peso das querelas processuais nos tribunais e a burocratização quase "patológica" do aparato de distribuição da justiça com seus rituais rígidos, suas hierarquias aristocráticas e suas práticas autoritárias. Daí também os problemas decorrentes de uma formação profissional que reclama exclusivamente aptidões técnicas, oferece poucas oportunidades para atualização, muito pouco expõe magistrados ao confronto com os problemas concretos da sociedade, tornando-os frequentemente insensíveis às desigualdades sociais e jurídicas. Daí ainda os problemas decorrentes de um processo de recrutamento e seleção de juízes que obedece a regras corporativas, valoriza as hierarquias consolidadas e reforça mentalidades e comportamentos que julgam ser esses atores sociais entidades humanas superiores, não comprometidos com a proteção dos direitos humanos e não sujeitos ao controle democrático da sociedade civil.
Neste cenário, em que o legalismo expulsou a justiça e que parece caracterizar nossas práticas judiciárias, Dalmo Dallari enfrenta "sine ira et studio" as questões que arrepiam o humor corporativo da magistratura brasileira, como os frequentes ataques à sua independência, mormente propostos pelo Poder Executivo em seu afã de simplificar procedimentos legais, encolher o aparato de justiça e safar-se do controle constitucional de sua atividade normativa, como também o controle externo do Poder Judiciário, sua democratização interna e a ampliação do acesso à Justiça para os cidadãos de "segunda classe".

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