São Paulo, sexta-feira, 10 de janeiro de 1997
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Para músicos e não-músicos

WALTER LOURENÇÃO

Numa tradução fluente e objetiva, oferece-se agora, para o público em geral, e não apenas para os músicos, a "Poética Musical em Forma de Seis Lições", resultantes de palestras que Stravinsky proferiu em 1942, e que foram publicadas pela Harvard University Press.
As conferências foram feitas em francês. Antes de publicá-las, Stravinsky as reelaborou com o auxílio de outro mestre da precisão, Paul Valéry. A barreira do idioma sempre fora muito forte para Stravinsky. Ele próprio confessava que, meio século após ter deixado o mundo de fala russa, ainda pensava em russo e que, ao falar outras línguas, era como se estivesse traduzindo a si mesmo.
Perguntamo-nos, entre parênteses: seria lícito pensar que as constantes rítmicas, melódicas, fraseológicas, estruturais, sintáticas do idioma russo fazem parte inseparável do idioma de Stravinsky?
George Seferis abre o livro em tom carinhoso, anunciando que Stravinsky procura estabelecer uma série de relações entre o fazer musical e o fazer artístico e humano em geral e, mais especificamente, entre os modos de organizar o material e a estrutura da ação exercidos pelo compositor.
Stravinsky avisa que não pretende fazer uma confissão à maneira de Rousseau e menos ainda uma auto-análise de tipo psicanalítico, o que, segundo diz, seria apenas uma triste profanação dos verdadeiros valores do homem, ainda que sob disfarce pseudocientífico.
Promete esforçar-se em não se tornar dogmático, embora esteja consciente de que o dogma ocorre fatalmente ao observarmos o fenômeno criativo por meio das formas como ele se manifesta.
Esclarece que sua pessoa e suas obras foram marcadas, à sua revelia, pelo contato com a realidade musical que o cercava, bem como pelo ambiente humano e o mundo das idéias na forma de reações, ora violentas, ora arbitrárias. Lembra que algumas de suas obras surgiram em momentos caracterizados por profundas mudanças, que subverteram a ordem das coisas e perturbaram muitos espíritos.
Discute de forma polêmica a distinção e as relações de dependência que existem entre espírito revolucionário, audácia e arbitrariedade, e o perigo mesquinho que o artista corre ao tentar causar sensação a qualquer preço.
"Sou a favor da audácia, desde que ela atue sob uma luz impiedosa, que denuncie a moeda falsa que gostaria de usurpar o seu lugar", diz Stravinsky.
Pondera, de forma acre, sobre o caráter dos "comentaristas" musicais, antigos e modernos, que se recusam a tomar conhecimento das transformações por que o mundo passa e que por isso não se transformam eles mesmos, ficando à margem da dialética do processo criativo.
Por isso, promete tratar nessas "lições" de antigos assuntos como academicismo e modernismo, classicismo e modernismo, para tentar esboçar uma espécie de "biografia da música", na forma de uma hierarquia de relações e fenômenos.
No capítulo dois, lembra que o ser humano consciente é quem cria a música, inspirado ou não pelos sons da natureza. É um espírito que ordena, dá vida, cria.
Sugere que a percepção musical exige memória alerta e atenta, uma vez que o discurso musical ocorre numa sucessão temporal, o que caracteriza a música como uma arte cronológica e não espacial, como acontece nas artes plásticas. Por essa razão, diz, a métrica se torna essencial para estabelecer uma ordem no movimento percebido temporalmente.
"Achei que valia a pena mergulhar no problema do tempo na música porque as considerações daí resultantes poderiam ajudar-nos a entender os diferentes tipos criativos". Quanto à missão do compositor, Stravinsky diz que seu dever em relação à música é precisamente o de inventá-la.
Polemiza sobre invenção e gênio quando afirma que em "La Donna è Mobile" havia mais substância e invenção do que na retórica e nas vociferações do "Anel dos Nibelungos". Analisa o antagonismo Verdi-Wagner em termos de ordem-desordem, ou de esforço para pensar sem ordem, produzindo, no caso de Wagner, uma música infinita, ou seja, uma música que jamais teve motivo para começar, assim como não tem razão para terminar, relegando a ordem à condição de "simples musa das esquinas".
No quarto capítulo, diz que costuma descartar para selecionar, diferenciar de maneira a unir, pois toda arte pressupõe um trabalho de seleção.
Stravinsky vai ilustrando seus conceitos precisos e claros com exemplos de vários autores, que denota conhecer em profundidade. Denuncia o perigo dos seguidores da "religião do progresso", tão perniciosos quanto os fanáticos defensores do passado. Analisa a seguir a natureza e a função da crítica como arte.
No quinto capítulo, pede que consideremos a música russa como "música", não como "russa", e que a compreendamos sem apelar para o exótico da balalaica, da vodca, do samovar ou da troika. Ela deve ser compreendida pelos seus avatares, isto é, pelas transformações por que passou ao longo de sua existência.
No último capítulo, fala sobre performance musical e considera a influência que as pessoas exercem sobre a vida da música, uma vez que em sua maioria apenas ouvem música, pois não lêem as partituras orquestrais.
Considera, por último, a função do intérprete, que é a de transmitir a música aos ouvintes.
Pelo modo singelo e sincero como estas "lições" foram escritas, tornam-se uma leitura ao mesmo tempo agradável e indispensável, um verdadeiro livro de consulta diária, que estimula a reflexão e o pensamento crítico, sem a pretensão de ensinar verdades definitivas.
Um "must" para músicos e não-músicos, que auxilia a compreender não apenas a música, mas o espírito de nosso século.

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