São Paulo, sexta-feira, 10 de janeiro de 1997
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O canibal e o capital

VINICIUS DANTAS

Oh, quantas águas rolaram até que o mundo coubesse num telefonema! "Telefonema" é a coluna de quando muito uma lauda que Oswald de Andrade manteve no "Correio da Manhã", entre l944 e 1954 -de todas as suas colaborações regulares, a mais duradoura (600 artigos). O que significa a linha direta? Foi-se o tempo em que o telefone era celebrado por um futurista bobo como um "monstro de nervos metálicos e insensíveis, que, entretanto, vibram mais que uma alma em desespero!", agora o aparelho, sinônimo de alto-falante, é sinal de que a própria comunicação se tornou problemática, e o escritor grita ao mundo suas opiniões meio ao léu. Telefonema também significa que nessa conversa íntima em público existem, no mínimo, duas vozes atendendo o visceral dialogismo do estilo oswaldiano; o vezo chega a tal ponto, que nas ocasiões em que dispensa os diálogos imaginários ou a transcrição de falas populares, ele simplesmente paragrafa com travessões ou dialoga consigo na terceira pessoa. Dialogismo quer dizer também que nenhum argumento vale em si mesmo, precisando ser cruzado com os demais, nenhum dá conta da situação que a todos envolve e contra todos se impõe: a opinião de Oswald é seu estilo de movimentar essas opiniões contraditórias, incorporando suas parcialidades para abrangê-las num mosaico significativo.
A crônica, na versão oswaldiana, não pretende integrar-se no cotidiano, nele habitar com naturalidade, falando uma linguagem solta e simples que deseja aproximar os homens numa comunidade lírica. Existe aqui um ânimo teórico e uma agressividade especiais, de quem dispõe em sistema seus dados, procurando compreendê-los ideologicamente a partir de um remoto significado político mundial. Oswald não é um amante do miúdo, com o enleio de uma conversa fiada sedutora, escrita com oralidade e humanismo conservador. Seu "cronismo" tem muito de comentário e filosofia espontânea -fatos, idéias, posições políticas, medidas governamentais, atitudes artísticas são o apoio de sua breve divagação que, sem preconceito, coloca todas as coisas na mesma igualdade de condições expositivas. Se a experiência intelectual está voltada para o cotidiano, que a magnetiza, seu estilo atesta a dificuldade de aderir à vida, de se reconhecer nos outros ou no Brasil, cuja realidade já tem um teor de brutalidade maior que o de poesia.
Quase sempre Oswald procura com a ciência das pequenas observações, com o refabrico do fato registrado, alguma faísca de ficção que desencadeie sua imaginação, uma espécie de apoio para divagar, produzindo uma efabulação marcadamente literária. Uma grã-fina com seu copo de uísque é o imperialismo que já se intrometeu nas festas da burguesia paulista, é o fracasso dos jesuítas que fundaram São Paulo, é o paroxismo racial dos que não se misturaram, é a estreiteza nacionalista que a cada dia adquire hábitos americanizados. Tudo vibra alegoricamente, dado que a caricatura generaliza as reações, desindividualizando-as numa extensão vasta de grande literatura, embora o espaço seja mínimo e os figurantes nunca planem por sobre o diz-que-diz paulistano. Temos portanto um escritor implantado numa sociedade moderna, circulando entre classes sociais opostas, atento às coisas do dia-a-dia, às opções ideológicas e práticas, à vida intelectual e às oficialidades, com um conhecimento do imaginário político raro em autores brasileiros. Justamente a figura do escritor realista, se não for deselegante a lembrança, capaz de participar dos acontecimentos e se enfronhar na transformação do processo social, que Georg Lukács acreditava que 1848 havia enterrado.
Estamos em certo São Paulo ("essa província lusa do Juízo Final") dos anos 40 e 50, em que a alta burguesia toda se conhece e se frequenta, em que a vida cultural está sob a égide da grã-finagem que soube se adaptar só Deus sabe como ao Estado Novo e à industrialização. Seu cenário típico é um apartamento vasto da Praça de República ou a casona do Jardim América em que desfilam numa reunião festiva os principais personagens do pós-Guerra: os ricos que só planejam abusar da margem de lucro, burlar o fisco e enriquecer à custa do estatismo, as novas gerações que adquirem uma naturalidade que não dá para saber se é uma nova barbárie ou uma humanidade pacificada com o instinto, a intelectualidade que se acomoda em inquietações existenciais inflando veleidades universalistas. É uma comunidade primitiva em que as relações pessoais prevalecem sobre a inexorabilidade dos processos econômicos e o non-sense do jogo político, o que permite, por sua vez, que Oswald se dirija pessoalmente aos governantes e aos grandes empresários, tomando satisfação, aconselhando ou bronqueando em clima cordial.
Tenho para mim que essa personalização excessiva deforma sua percepção: a proximidade é humanizadora e muito paternalista, vincando inclusive o estilo oswaldiano que, salvo erro, pressupõe o efeito da piada sobre o salão e o posterior congraçamento da audiência. Todavia, nosso Antropófago sublinha a ferocidade dessa classe e sua infinita capacidade adaptativa, descrevendo o comportamento antisocial dela em toda gama de venalidade, corrupção, esperteza política e generosa desinformação. A humanização em parte é devida a seu fraco pelos ricos que patrocinam as artes, compram quadros e promovem este ou aquele artista, afinal estamos numa sociedade em que um mero concerto de música contemporânea vira uma eterna estréia de "Le Sacre du Printemps" e um prefeito amigo das artes adquire logo as feições de um Lourenço de Médicis. Oswald também tem uma caidinha pelo assistencialismo e pela filantropia, não obstante o viés humanizador provenha sobretudo do papel que, segundo ele, a cultura passaria a desempenhar no mundo do pós-guerra com a atenuação do poder econômico.
Oswald jogava desse modo sua última cartada de utopia -o fim da guerra acarretará, profetiza, uma inflexão histórica ora no "crisol de um amanhã melhor". Tanto a volta ao estado de direito com a queda de Getúlio Vargas quanto a vitória dos aliados sobre o nazifascismo acenderam nele tal otimismo, que a redemocratização é vivida como o fim do clientelismo ("a política de clã") e o tratado de Teerã sinaliza o início de uma coabitação pacífica dos dois sistemas. Haverá uma democratização geral, com a melhoria material da vida e aumento do tempo livre, visto que a generalização da técnica diminui a necessidade do lucro, arrefece os interesses imperialistas e conduz à auto-reforma do capitalismo; por outro lado, o socialismo se humanizará com o fim da ditadura do proletariado e da luta de classes, pleiteando na linha de Earl Browder a autodissolução dos partidos comunistas.
De passagem, é preciso notar que os artigos sobre política brasileira são a maioria e, em geral, têm grande interesse e graça, desmentindo sob a pátina de sarcasmo a idéia de que Oswald era um franco-atirador narcisista -a crônica "Palavras a Prestes" por exemplo demonstra sua invulgar correção e senso de justiça, mesmo depois de afastado dos quadros comunistas. É importante notar que Oswald rompeu com o comunismo por atritos pessoais e sem uma crítica consistente ao stalinismo, apenas à ortodoxia que se recusa admitir as novas condições objetivas que, segundo ele, inviabilizaram a política revolucionária. Logo, porém, os fatos rechaçam uma por uma as esperanças atiçadas com fervor, propondo novas realidades que escapam à lógica linear da sua idiossincrasia utópica. Todos os acontecimentos e tendências sociais registrados cotidianamente nessas crônicas o desmentem, e ele muitas vezes o reconhece, porém Oswald enfuna as velas da utopia do matriarcado e da antropofagia, tudo para não admitir, como faz ainda hoje um Fukuyama, que o particularismo cultural não salvará o capitalismo.
Enfim, Oswald se converteu "malgré lui" num moralista que encara sempre contrafeito a modernização do país, a destruição da vida popular, a americanização dos costumes e a manipulação da linha de massa do populismo que, em países como o Brasil, barra os avanços da classe trabalhadora e a democratização profunda das estruturas sociais. Denuncia a burrice comunista que preferiu se submeter às ordens de Moscou e a parasitar o sindicalismo oficial, mesmo tendo em alta conta as conquistas sociais do trabalhismo. Em grande número de crônicas, ele protesta contra a liquidação do lirismo popular -aquela reserva florestal de brasilidade (que Caetano Veloso até hoje acredita que existe na Bahia) estava acabando justo para o poeta que lhe vislumbrara a beleza vanguardista nos anos 20. Graças a "Telefonema", a coletânea organizada e apresentada por Vera Chalmers, a gente acompanha a transformação desse povo lírico e bom em proletário, em consumidor americanizado, em mão de obra espoliada pelo trabalho fabril e mecânico, a caminho da sindicalização e do paletó preto -o símbolo máximo da reificação trazida pelo varguismo.
Se é verdade que houve melhoria de vida e diminuição da miséria, o povo desrecalcado e desneurotizado sumiu do mapa. A difusão da civilização técnica e a cultura de massa desassossegam o velho poeta pau-brasil que as observa sem entusiasmo, registrando o consumismo, a falta de caráter, o comercialismo das mulheres automáticas, a desmoralização do lar, a crise do parentesco, que destruíram as fontes dionisíacas (portanto, pré-freudianas) da vida. Todavia o otimismo crianção de nosso Antropófago luta o tempo inteiro com aquilo que vê e descreve e, com o orgulho de quem contribuiu para tirar o país da pasmaceira da República Velha, reafirma suas convicções, agarrando-se nostalgicamente à tradição que ajudou a abalar. Por outro lado, tem muita fé em que o Brasil continue sendo "este velho país sem pecados nem remorsos e portanto sem culpa", o país "secularmente democrático e popular" que assiste o desenrolar de nosso tempo, ao largo de seus horrores (o tradicionalismo aqui é similar ao de Gilberto Freyre, embora a teoria seja outra).
A experiência de vida do cronista desmente porém sua positividade ingênita, tanto que seu populismo radical sabe que agora é preciso salvar o povo da cultura de massa, das classes dirigentes e do exemplo desagregador dos políticos -mas salvar como? Mesmo que o comunismo tenha permitido que ele refundisse seu sentimentalismo, aguçando-lhe o senso de indignação contra a pobreza e as desigualdades sociais, as possibilidades de transformação têm pernas curtas, geralmente decepadas pelo trabalhismo apoiado pelo PCB (Partido Comunista Brasileiro). Diga-se o que disser dessas posições polêmicas, acho que elas tiveram contudo o mérito de incorporar para a discussão política e filosófica o perfil novo do proletariado, da classe média, atentando na distribuição da riqueza no país, com seu padrão de desigualdade peculiar, num mundo em que, segundo ele, a luta de classes se atenuou, a ideologia se tornou técnica social e o progresso material não teve equivalência espiritual. Vejam só: "Meu caro, o conceito de proletariado mudou de Marx para cá. Houve uma redistribuição da mais-valia, houve as leis sociais. A ciência nos países avançados fez do trabalhador um técnico. Nos países atrasados tem havido uma proletarização em massa. Não se pode mais invocar seriamente a ditadura duma classe que deixou de ser 'revolucionária', que se aburguesou. O que resta é mesmo o grupo, o partido, o fascismo. Eles!".
Sem rodeios: o antropófago sobreviveu ao canibalismo, feio e vulgar, do capital. Por isso, o antropófago que sai dessas crônicas mais parece o homem polido e cordial que, antigamente, na boa civilização patriarcal de nossos avoengos, estava a salvo da lógica do dinheiro e da sociedade de massas. A série de meditações hospitalares com que Oswald dá um balanço na vida é um momento de extrema resignação e pacificação, convertida por fim a antropofagia numa espécie de consolação filosófica, um espiritualismo moderno e órfico, um autêntico cristianismo tropical, socialmente generoso. A trajetória se encerra com amargura e muita fé, acrescida do sofrimento da doença e do cansaço. Um dado a mais da humanidade de Oswald é a sua consciência de que chegou ao fim iludido sistematicamente por seu otimismo social, pois o tempo que lhe foi dado viver encobriu e distorceu sua percepção. Ao fim e ao cabo, tanto a República Velha quanto o Estado Novo e o governo Vargas, uma embalada pelo último ciclo do café, os outros, pela industrialização de base, foram interregnos em que as condições internacionais favoráveis fizeram-no acreditar ilusoriamente numa chance nacional de modernização genuína. A miséria permanente do povo que já nem povo é, a brutalidade modernizadora, o absurdo beckettiano da política brasileira, a parcialidade da revolução artística, estão aí a machucá-lo. Foram ilusões históricas poderosas que jamais foram ilusões meramente pessoais desse filhinho de mamãe canibal, tanto que se precisou esperar até 1964 para serem dissipadas de vez (acho que minto) do nosso horizonte.

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