São Paulo, sexta-feira, 10 de janeiro de 1997
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Origens da escola pública

MARIA DAS GRAÇAS DE SOUZA DO NASCIMENTO

Nos anos 1770, Diderot, interessado em contribuir para a modernização do império russo, supostamente empreendida por Catarina 2ª, aconselha à imperatriz que abra, em cada cidade, uma escola, ou várias, de acordo com a necessidade, todas instituídas a partir de um mesmo plano elaborado pelo governo e abertas a todas as classes. Mais do que isto, acrescenta o filósofo, os pais devem ser obrigados por lei a enviar seus filhos à escola, onde a infância e a juventude deverão receber uma educação civil, relativa ao bem da sociedade, e que deverá tender a formar cidadãos honestos e esclarecidos.
Alguns anos antes, Rousseau, de modo semelhante, ao redigir para a "Enciclopédia" o verbete "Economia Política", havia afirmado que as crianças, numa república bem constituída, devem ser educadas em comum, sob o princípio da igualdade.
A educação pública deve obedecer a regras prescritas pelo governo, para que possa cumprir sua finalidade, que é a de formar cidadãos capazes de amar o bem público acima de seus interesses particulares.
Em 1792, em pleno período de efervescência revolucionária, Condorcet apresenta à Convenção um projeto de instrução nacional que defende a escola gratuita para todas as crianças francesas de qualquer origem. Além disso, o projeto estabelece que a instrução pública deverá ser laica. Os professores seriam escolhidos pela comunidade. Os padres só poderiam ser professores se renunciassem ao sacerdócio. Do contrário, deveriam ensinar apenas nos templos.
Esta trajetória, iniciada nos meados do século 18, e que vai do debate intelectual entre os filósofos iluministas sobre a questão da educação até a concretização de suas idéias na forma de projetos de lei sobre a instrução pública, na época revolucionária, é cuidadosamente reconstituída por Carlota Boto. A autora mostra, por meio do exame tanto dos textos filosóficos quanto do discurso dos militantes da revolução, que, na sua origem, a idéia de escola pública se configurava a partir de uma rede de referências que associava pedagogia e esfera pública, educação e militância cívica.
Assim, para os iluministas e para os militantes políticos, a partir de 1789, a escola é pensada não apenas como o lugar da difusão da ciência ou de instrução, mas concebida como espaço privilegiado de formação da cidadania.
Com efeito, a Revolução Francesa, para usar as palavras da autora, "levou à radicalidade" a herança da Ilustração, "dando substância ao debate sobre a institucionalização do ensino público". É claro que é necessário demarcar a distância que se estabelecerá entre as "hesitações" dos filósofos e enciclopedistas e a forma concreta que a questão do ensino público assumirá no calor da militância revolucionária.
Mas esta distância não deve ser entendida como ruptura. Se, de um lado, os militantes de 89 pensavam o empreendimento revolucionário como inauguração de um tempo novo, de outro, como se sabe, seus discursos buscam na filosofia que os precedeu as armas contra o Antigo Regime.
"A Escola do Homem Novo" é interessante precisamente pela percepção deste ponto de inflexão que foi o cruzamento entre a apropriação de uma herança intelectual e a sua transformação a partir das determinações próprias dos momentos revolucionários, além de trazer à tona o problema do ensino público, que ainda hoje, aliás, em nosso país, não é questão resolvida. Basta lembrar, por exemplo, o número de crianças ainda excluídas das escolas, o que atinge o direito universal à educação, ou o artigo de nossa atual constituição, que ordena a volta do ensino religioso nas escolas públicas, num claro retrocesso em relação aos ideais iluministas de uma instrução laica.
O trabalho de Carlota Boto está, evidentemente, sujeito a todas as dificuldades de uma proposta que pretende abarcar, de um lado, toda uma corrente de pensamento ao mesmo tempo densa e heterogênea, e, de outro, tanto a história quanto os discursos políticos do período revolucionário. Isto leva frequentemente a autora a recorrer a comentadores e citações de fontes secundárias. Não deixa contudo por isto de ser uma importante contribuição brasileira para a bibliografia sobre a história da educação.

Maria das Graças de Souza Nascimento é professora de filosofia da USP e autora de "Voltaire, a Razão Militante" (Moderna).

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