São Paulo, sexta-feira, 10 de janeiro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Excessos da pontuação

RAQUEL DE ALMEIDA PRADO

O erotismo romântico, para o leitor contemporâneo, pelo menos aquele que se encaixa na categoria "aficionados do gênero", pode soar mais aprazível que o do século das Luzes. Livre da "conversa fiada" filosófica que atrapalha a ação, o libertino romântico pode se entregar mais completamente aos excessos da paixão... e da pontuação. De fato, o frenesi exclamatório dá o tom em "Gamiani ou Duas Noites de Excesso", que, segundo a lenda, Alfred de Musset teria escrito em três dias (tudo isso?!) para cumprir a promessa de escrever uma novela extremamente erótica sem uma única palavra obscena.
A trama é simples: um jovem fascinado pelo mistério que envolve a bela condessa Gamiani, uma "tribade", se esconde nos seus aposentos para surpreendê-la com outra mulher, no caso, a jovem e pura Fanny B... A história então se desenrola rapidamente, alternando a forma da narrativa -conduzida pelo jovem curioso, que logo se entrega à ação- e os diálogos em ritmo dramático, entremeados pelas confissões dos três heróis. Nessas confissões, toda uma tradição da libertinagem é relembrada. As mesmas cenas que frequentam a imaginação libertina desde os contos milésios, linhagem fortemente enriquecida pela veia clerical, são reinterpretadas à luz da auto-ironia romântica. Ironia que talvez pareça mais acessível -e hilária- que o humor dos libertinos-filósofos. Também, sem a ironia, como suportar o excesso? "É terrível! É terrível! Assim você me mata. Oh! Deus! Vou morrer..." As ameaças de morte se sucedem, mas também há momentos de calmaria: após fazerem tudo, ou quase, que um "ménage à trois" é capaz de fazer, a condessa se recompõe e repreende o "penetra". "Cavaleiro, foi realmente uma surpresa infeliz. Sua ação não passe de uma terrível emboscada, de uma covardia infame... O senhor me faz enrubescer."
A questão da autoria é polêmica. "Gamiani" é publicado em 1833, sem o nome do autor, e, paralelas à circulação do romance circulam as anedotas que o atribuem a Alfred de Musset. Versão contestada por alguns, corroborada por outros, sempre em função das falhas no estilo. É bem provável que tenha sido mesmo Musset o autor e, de qualquer forma, nesse período justamente em que ele estava mais em evidência, a associação de seu nome ao romance era uma boa jogada editorial.
O fato é que Alfred de Musset é um personagem e tanto, com suas desventuras amorosas que deram pano para manga na crônica da vida privada dos jovens heróis românticos. Execrado pela geração posterior pelo seu sentimentalismo chororô, Musset é autor de prosa, poesia e, sobretudo, da "única peça shakespeariana do teatro francês" (segundo os franceses, é claro), "Lorenzaccio", assim como de outras peças, como "Rolla" ou "Com o Amor Não Se Brinca". A princesa Belgiojoso, outra "figura" da época e uma de suas musas, teria dito dele, com pertinência, que ele sentia como Shakespeare e escrevia como Marivaux. Boa definição para o dândi, pequeno príncipe romântico de quem piores línguas também disseram que era "um jovem de muito passado". Talento precoce, mas rapidamente esgotado, meio perdido entre a inspiração byroniana e a nostalgia dos clássicos, era mais lúcido do que se costumava pensar.
Mas voltando à questão da autoria, dada a natureza peculiar da ficção em "Gamiani" (seriam seus fins "intransitivos"?), dada também a importância do "mito" do poeta romântico na história da literatura, podemos nos perguntar se cabe aqui falar em obra que sobrevive ao autor. Se não fosse o interesse de curiosidade que desperta no leitor a possibilidade de conhecer a erótica do "enfant du siècle", constariam ainda as "Duas Noites de Excesso" nas coleções libertinas? Talvez. Mas, em todo caso, essa nova edição brasileira dá todo o destaque à lenda: tanto na contracapa quanto no prólogo da tradutora é comentada a atribuição da obra a Alfred de Musset. Então por que colocar, no mesmo prólogo, a questão da "morte do autor", última moda nos anos 60? Talvez possamos compreendê-lo, imaginando que se trata de uma adequação à matéria. A ironia de Musset, que nas "Cartas a Dupuis e Cotonet" se pergunta o que sobra da originalidade do romantismo a não ser o excesso de epítetos, bem pode antecipar a sua "dessacralização". O "autor", no auge da sua glória, se despede da posteridade: "É terrível! É terrível! Assim você me mata... Oh! Vou morrer...".

Texto Anterior: Origens da escola pública
Próximo Texto: Uma visão intimista
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.