São Paulo, sexta-feira, 10 de janeiro de 1997
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Racionalidades dos trópicos

SYLVIA G. GARCIA

A marca da reflexão contemporânea sobre a identidade é a consciência de seu caráter ficcional e indeterminado: construção humana contínua, múltipla e contingente, que nunca expressa uma subjetividade unívoca, idêntica a si mesma. Esse traço fundamental percorre, variadamente, os oito pequenos textos desta coletânea "sobre o significado da configuração cultural específica à sociedade brasileira e sua relação com o espaço cultural de outras sociedades". O resultado é um interessante conjunto de estudos que oferece uma pequena amostra de diferentes possibilidades de tratamento dos dilemas distintivos da cultura brasileira, relacionados aos modos de pensar a sociedade nacional e sua história, sua relação com a modernidade e com a cultura européia.
Apesar da diversidade geral, é possível identificar basicamente três tipos de enfoques, desigualmente representados neste pequeno painel. Na maior parte do livro, o leitor entra em contato com pesquisas de sociólogos, antropólogos e historiadores sobre temas empiricamente bem delimitados da história cultural brasileira, trabalhada, principalmente, em torno da história da literatura. Acompanhamos, assim, as soluções dadas ao desafio que é a arte barroca colonial para os que escrevem a história da cultura brasileira no registro da civilização moderna; a linhagem cientificista do pensamento social de Euclides da Cunha; a concepção antropofágica de Oswald de Andrade; o olhar estrangeiro de Stefan Zweig, ávido de utopia; a contraposição entre as correntes críticas que se formam em torno das revistas "Clima" e "Noigrandes", na São Paulo dos anos 50.
Seguem-se, então, dois artigos que tratam da inserção da arte brasileira contemporânea no circuito internacional de difusão. Sonia Salztein e Nelson Brissac Peixoto discutem a integração de artistas brasileiros ao mercado global de arte, colocando em cena novas formulações das ambiguidades da vida cultural contemporânea na sociedade local, no circuito internacional e nas suas descompassadas inter-relações. Finalmente, no último texto, Olgária Mattos trata da gênese da concepção racionalista moderna de uma verdade identitária unívoca, contraposta à dialética da relação entre o eu e o outro em Merleau-Ponty, expressão de uma racionalidade ampliada, que resgata as dimensões passionais e indeterminadas da existência humana sequestradas pela razão objetivista.
A diversidade de enfoques levanta algumas questões sobre as potencialidades de um diálogo entre as pesquisas sobre o passado da cultura brasileira, as interpretações em torno da arte contemporânea e a exegese filosófica. Uma questão emerge, por exemplo, da comparação entre a perspectiva dos estudos que enfocam o passado e a das análises sobre a situação atual. De um lado, leituras críticas das dicotomias próprias aos modelos analíticos rejeitados pelo pensamento contemporâneo (tais como centro/periferia ou cultura autêntica/cultura reflexa); de outro, análises das formas da ambiguidade na época atual, em contexto nacional e internacional.
É, então, digno de nota que a reflexão sobre o presente coloque em cena novas configurações de velhos descompassos. De imediato, elas funcionam como antídotos contra a absolutização da crítica às interpretações baseadas na dicotomia centro/periferia, que acompanha a representação intelectualmente ingênua, mas politicamente poderosa, da globalização como processo de superação das desigualdades por uma cultura planetária e democrática, que incorpora toda diversidade. O problema remete ao rápido comentário de Eliana Maria de Melo Souza, a propósito da tão decantada nova ordem mundial: "A novidade vai mais por conta da situação mundial ou mais por força de mudanças na maneira de se pensar a questão?".
Outro ponto suscitado pela multiplicidade de enfoques disciplinares pode ser formulado a partir do último texto do livro. A análise conceitual filosófica ilumina retrospectivamente os trabalhos anteriores, revelando como eles se unificam em torno do problema da concepção contemporânea da racionalidade moderna. Na direção contrária, contudo, os vários estudos mostram a diversidade existente no interior de uma mesma concepção ampla. Assim, as ciências sociais dialogam com a filosofia, expondo a enorme gama de combinações e desenvolvimentos que podem germinar sob o signo de uma mesma tradição de longa duração, desvelando as profundas diferenças que separam o cientificismo de Euclides da Cunha do racionalismo de Mário de Andrade ou da razão tecnológica dos poetas concretos, para citar apenas uns poucos exemplos.
A pluralidade de linhas analíticas e de estilos de reflexão, postos lado a lado nesta coletânea, suscita várias questões dessa natureza, que ficam como um convite ao leitor para que também ele ensaie o autoconhecimento, mediante a imaginação exploradora das alteridades.

Sylvia Gemignani Garcia é professora do departamento de sociologia da USP.

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