São Paulo, sexta-feira, 10 de janeiro de 1997
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O escravo como sujeito

MARY DEL PRIORI

MARY DEL PRIORE
Certo dia de 1738, na Fazenda do Mocambo, no Papagaio, bem próximo a Sabará, o agonizante Manoel Macedo de Guimarães, português e solteiro, muito provavelmente entre círios e bentinhos, assim ditava seu testamento: "Declaro que de uma escrava minha, mulata, por nome Francisca, tive quatro filhos, a saber Caetano, que nascendo no Sabará o mandei batizar por forro e passar-lhe sua carta de alforria, (...) José, Valentim e Thomás, aos quais mandei passar também carta de alforria, (...) o que ao depois passei carta de alforria à dita Francisca, que sendo já forra tive dela mais os filhos seguintes a saber, Pedro, Maria, Archangello, Bernardo, Lourenço e Florencia, os quais nasceram já depois de forra a mãe e assim, estes seis, com os quatro acima os hei liberto e hei por meus filhos e como foi os criei e os hei por meus herdeiros necessários para da minha fazenda herdarem".
Uma edulcorada história de amor, nos moldes da de Chica da Silva, com seu intendente de diamantes, na qual "tout est bien qui finit bien"? Certamente não! Mas, sim, história do Brasil colonial, e da muito bem-feita, pesquisada e escrita pelo jovem professor Eduardo França Paiva.
"Escravos e Libertos nas Minas Gerais do Século 18", em pequena e primorosa edição, é um destes livros obrigatórios para quem deseja estudar e compreender o que foi a escravidão neste país. Apoiado em cerca de 400 testamentos do século 18, o autor mergulha na sociedade mineradora desvendando os personagens que patinhavam na sua movediça estrutura. Quais as relações entre senhores e escravos? Quais as formas de alforria utilizadas e que estratégias eram empregadas para obtê-la? Qual o sentido da liberdade e como ela era gozada por homens e mulheres que, frente à lei, não representavam mais do que um instrumentos de trabalho? Senhores preocupavam-se e oravam por seus escravos? Livres casavam-se com escravos? Qual o papel de mulheres como Francisca, que passavam de escravas a amantes, a concubinas e a herdeiras legítimas e que, na euforia da fortuna, acabavam por reescravizar seus irmãos? E daquelas que criavam famílias ou outras redes de solidariedade, dando aos seus filhos e agregados suporte material e espiritual? Quais os objetos materiais que compunham o universo do trabalho escravo e que eram deixados em testamento aos seus familiares?
Por estas e tantas outras questões, Paiva dá respostas com o fôlego de quem, como poucos, conhece os arquivos do período. Ultrapassando o seu propósito explícito, que é o de discorrer e interpretar a vida material, familiar, social e religiosa dos escravos, ele constrói um texto pleno de vigor e, indo mais além, engaja-se, com enorme competência na discussão, hoje em curso, sobre o sistema escravista, o que torna, aliás, o seu livro ainda melhor.
Alinhando-se com os notáveis trabalhos de Silvia Lara e João José Reis, percebe os escravos como agentes históricos que transformaram o seu tempo e construíram nossa cultura. Revela-os, com absoluta nitidez, como homens e mulheres que resistiram de todas as formas e a todo o custo à escravidão, adaptando-se, inclusive, ao sistema. A cada nova forma de dominação e violência, eles respondiam com novas estratégias de resistência. Como bem resume Paiva: "No escravismo imposto a vastas regiões americanas, durante todo o tempo, tanto os escravos adaptaram-se ao sistema, quanto este último adaptou-se aos primeiros, talvez com maior intensidade".
Alimentando por todas as qualidades de uma excelente pesquisa documental, emoldurado por uma narrativa ao mesmo tempo modesta e irresistível, eis aqui um livro obrigatório e uma contribuição inegável para a história do Brasil.

Mary Del Priore é professora de história do Brasil Colonial no departamento de história da USP e autora de "Ao Sul do Corpo: Condição Feminina no Brasil Colonial" (José Olympio), "Festas e Utopia no Brasil Colonial" (Brasiliense), entre outros.

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