São Paulo, sexta-feira, 10 de janeiro de 1997
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Memórias da matriz de Nossa Senhora da Guia

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

O tempo fechara, o aeroporto acompanhara o tempo e também fechara, a demora seria longa, podia durar a noite toda, o jeito foi usar o privilégio que o bilhete aéreo me dava e invadir a sala vip com minha sacola de mão e o aborrecimento de estar iniciando a viagem com atraso.
Perderia a conexão em Madri, era o começo dos abrolhos que me perseguiam desde que, duas semanas antes, aceitara ir a Londres cobrir para uma revista o casamento do príncipe Charles e de Lady Di.
Foi entrar na sala Vip e ouvir alguém me chamando com intimidade. O desconhecido se aproximou, eu suspeitava que era vagamente mineiro, vagamente produtor de leite -e indiretamente ele confirmou as vagas suspeitas: embarcava para a Austrália com outros produtores de Minas e São Paulo.
Convidou-me para o canto onde estava a sua turma, quatro ou cinco desconhecidos como ele, apresentou-me aos demais com notável economia de dados -tampouco deveria saber muito de mim- e retomou a conversa que unia aquele grupo: iam a uma exposição de gado em Melbourne, esperavam ver maravilhas na mesma medida em que viam o descalabro do rebanho nacional.
O interessante assunto se generalizou e eu fiquei na situação de Onassis quando falava inglês: ele só sabia três palavras ("of course", "wonderful" e "really") e mesmo assim conseguia fazer negócios de milhões.
Não era bem o meu caso. Não pretendia negociar bois nem vacas, leiteiras ou não. Fiquei nos monossílabos, espantando-me adequadamente e até me indignando diante da dramática situação do nosso gado vacum.
Bem ou mal, eu ia levando. Mas quando ouvi falar em "matriz" fiquei boiando. Para um ex-coroinha, matriz era a igrejinha de Nossa Senhora da Guia, no Lins de Vasconcelos, branquinha, em cima do pequenino morro, com sua torre única encharcada de tempo e cambaxirras, sua enorme escadaria de pedra da qual rolei certa vez, esfolando para sempre um joelho, no qual guardo até hoje a cicatriz da ferida e a memória do susto.
Guardo sobretudo a memória do sino -o sino da matriz-, convenientemente rachado como convinha a um sino de matriz modesta, diferente dos parrudos carrilhões das grandes catedrais.
Aquele sino -que eu ouvia no quintal da nossa casa- continua me perseguindo vida afora. Muitos anos depois, na prisão de um quartel em Juiz de Fora, de repente, no meio da noite, ouvi aquele sino e mecanicamente me preparei para rezar -só então descobri que o tempo passara e eu não sabia mais rezar.
Pensava no meu sino, imperfeito sino, apropriado para chamar homens imperfeitos à prece e a Deus, mas o homem à minha frente continuava indignado com o descaso do governo em relação às matrizes.
Segundo informava, uma boa matriz estava custando tanto em pé, tanto abatida -e continuei pensando no quanto custaria a matriz de Nossa Senhora da Guia destruída por uma bomba ou terremoto.
Lembrei cenas de guerra, nas igrejas de Guernica, de Dresden, em velhas matrizes com séculos dentro de suas entranhas de mármore desventradas pela insânia dos homens.
Imaginei as igrejas de que gosto abatidas pelo descaso do governo, sangrando em suas feridas de pedra, Santa Agnese in Agone, na Piazza Navona, Santa Maria dei Fiori, em Florença, os Duomos de Siena e Orvieto, as soturnas catedrais da Espanha, o gótico flamboyant das igrejas inglesas, lamentaria por elas, mas sofrer, mesmo, só pela igrejinha de Lins de Vasconcelos, matriz de todas as matrizes.
Sim, concordei, era necessário fazer alguma coisa, cobrar soluções enérgicas dos poderes constituídos, mobilizar a opinião pública, ouvir o clero e os líderes comunitários. De braços cruzados, nada seria conseguido.
Para meu estupor, o homem falava agora sobre cifras, dizia que uma boa matriz e um boi avariado tinham o mesmo preço no gancho. Eu continuava distraído. Pensava na igrejinha onde fizera a primeira comunhão e onde um primo, numa estranhíssima história até hoje não aceita nem recusada pela família, jurava que tinha visto Santa Terezinha do Menino Jesus piscar o olho para ele.
Sair do primo -que se chamava Aderbal, vulgo Babau- e da matriz de Lins de Vasconcelos para a sala vip do Galeão e para o aviltado preço do boi no gancho exigia um esforço mental que a natureza me negou. Perguntei, com alguma veemência, que gancho seria aquele, capaz de nivelar no mesmo preço um boi e a igrejinha onde fui batizado e fiz a primeira comunhão.
O homem acabava de me explicar as soluções encontradas na Austrália para valorizar as matrizes em relação aos bois. Olhou-me desvairado, tomando-me como idiota. E só não me fez desfeita maior porque o tempo melhorara, o aeroporto abrira e a voz da Íris Letieri, saída de travesseiros amassados e lençóis úmidos de lascívia, chamou-o para o vôo 617, six, one, seven.

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