São Paulo, domingo, 12 de janeiro de 1997
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Proposta de JK tinha a marca da inclusão

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

Socióloga diz que, ao contrário de hoje, desenvolvimentismo podia acenar com expansão do emprego

Quais as diferenças entre o discurso ideológico sobre o desenvolvimento expressado por Juscelino Kubitschek e aquele que é adotado por Fernando Henrique Cardoso?
São muitas, mas a socióloga Miriam Limoeiro Cardoso, estudiosa do que se convencionou chamar de "era JK", enfatiza uma: em Juscelino, o discurso do desenvolvimento trazia a marca da inclusão -ainda que ela encontrasse limites na realidade.
"Já a proposta atual" -diz a pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados da USP- "é excludente de fato e também no discurso".
Enquanto JK podia acenar com a incorporação das camadas pobres à produção, oferecendo emprego e ascensão, no discurso atual a exclusão já está prevista.
Autora de "Ideologia do Desenvolvimento - Brasil: JK-JQ" (Paz e Terra, 1977), Miriam Limoeiro Cardoso é cautelosa nas comparações.
"O presidente, me parece, quer assumir a estatura política de JK, mas, que, de fato, ele seja um continuador e que alcance a estatura do Juscelino, eu não teria tanta certeza", diz.
Na entrevista que segue, a socióloga desenha a imagem de JK como expressivo dirigente político, capaz de construir uma hegemonia ideológica que, até hoje, permeia o debate brasileiro.
Nesse sentido, explica Limoeiro Cardoso, recorrendo à terminologia do dirigente comunista italiano Antonio Gramsci (1891-1937), JK exerceu uma direção política, "intelectual e moral", que empolgou o país em torno do projeto de uma fração de classe -os setores interessados na industrialização.
JK, diz ainda a pesquisadora, deve ser encarado como um firme agente da ordem e um "anticomunista ferrenho".
*
Folha - Qual a importância política de JK para o Brasil?
Miriam Limoeiro Cardoso - Juscelino foi uma liderança política profundamente expressiva. Ele soube expressar determinadas forças sociais que eram ascendentes naquele período.
A ascensão dessas forças contrariava setores longamente estabelecidos, mas não era episódica, não era ocasional: tinha perspectivas favoráveis de entrosamento dentro do que acontecia no mundo capitalista.
Eram as forças industriais, que não poderiam ser autônomas, mas tinham perspectivas objetivas de expansão e crescimento próprio.
Folha - Como JK se posicionou nesse jogo entre as diversas forças sociais e econômicas em cena?
Limoeiro Cardoso - Juscelino, em meio a uma crise de hegemonia, num momento preciso da história, soube expressar os setores ascendentes.
Ele assumiu a direção política, a direção "intelectual e moral", no sentido gramsciano, para construir um projeto político para o Brasil.
Ele foi, nesse sentido, um construtor de hegemonia. Não apenas soube dirigir politicamente os demais segmentos do capital, administrando os conflitos e contradições, como soube tornar esse projeto um projeto nacional -e não, como de fato era, um projeto de uma fração de classe.
Folha - Classicamente, trabalhou para transformar em universal um projeto particular.
Limoeiro Cardoso - Ele conseguiu criar hegemonia entre os grupos dominantes, consolidando a posição do setor industrial, mas foi muito além.
JK empolgou o conjunto da população. Ele fez esse conjunto da população aderir ao projeto, tomando-o como se fosse seu. É disso que se trata quando ele diz que queria criar o "espírito" ou a "consciência" do desenvolvimento.
Folha - Como ele consegue essa adesão?
Limoeiro Cardoso - Não é uma questão meramente ideológica, no sentido de uma atuação apenas no plano das idéias. Ele tem o que oferecer, porque há efetivas possibilidades de expansão da produção e do emprego.
Ele oferece uma possibilidade de ascensão social, a possibilidade de superação de um quadro de miséria, ainda que dentro de um contexto de desigualdade.
Nesse sentido, ele propõe uma ideologia da inclusão, infundindo a crença num futuro de prosperidade geral e estimulando generalizadamente a esperança.
O período JK traz essa marca da inclusão, ainda que somente, ou quase somente, na ideologia.
Folha - No discurso de JK essa promoção das massas deveria ocorrer estritamente nos limites da ordem capitalista?
Limoeiro Cardoso - A ordem, para JK, era intocável. Ela não podia ser questionada. O desenvolvimento para ele é a grande mola para manter a ordem.
Ao propor a erradicação da miséria, JK dá esperanças aos setores mais empobrecidos, obtendo sua adesão, e ao mesmo tempo neutraliza o grande foco da possível desordem.
É importante notar que a democracia e a tolerância política não eram essenciais ao desenvolvimentismo de JK. Foi possível que ele conduzisse o processo nesses termos, mas o essencial era a "ordem ocidental".
Folha - Como JK encarava as discussões sobre os motivos que faziam do Brasil um país "subdesenvolvido"?
Limoeiro Cardoso - Com Juscelino, o poder da ideologia do desenvolvimento se tornou tal que passou a encobrir todo questionamento sobre as razões do "subdesenvolvimento" que não fossem as ações individuais de lideranças "arcaicas".
Ele encarava como descaminho qualquer discussão sobre outros problemas, contradições e conflitos que não especificamente o "desenvolvimento". O lema era "mudar dentro da ordem para garantir a ordem".
Folha - Qual a importância da ideologia do desenvolvimento na sociedade brasileira?
Limoeiro Cardoso - Para compreender a dominação que a ideologia do desenvolvimento promove até hoje no Brasil é importante conhecer a ideologia que se tornou matriz dessa dominação, que é a ideologia do desenvolvimento em Juscelino.
Quando uma ideologia se torna dominante é ela que fornece os temas que passam a ser privilegiados na abordagem do real. Ela valoriza e orienta as buscas e as análises.
Ela pode vir a ser tão importante que os temas que torna centrais deixam de ser percebidos como temas ideológicos e passam a ser confundidos com a própria realidade.
É o que acontece com o "desenvolvimento" no desenvolvimentismo de JK.
Desde que se torna dominante, essa ideologia atua como filtro através do qual a "realidade brasileira" passa a ser percebida.
Tudo aquilo que se pensa sobre a realidade do país desde a década de 50 é mediado por essa ideologia.
Ela pode se apresentar em outros termos, como "integração ao Primeiro Mundo", mas a questão é a mesma e está profundamente entranhada pelas concepções ideológicas que Juscelino expressou.
Folha - O presidente Fernando Henrique Cardoso seria, num Brasil e num mundo diferentes, um continuador de Juscelino?
Limoeiro Cardoso - Não sei. O presidente, me parece, quer assumir a estatura política desse JK grande dirigente político, capaz de empolgar a nação e formular um projeto que faça sentido em termos da história e que venha a se inserir no desenvolvimento capitalista.
Mas, que, de fato, ele seja um continuador e que alcance a estatura do Juscelino, eu não teria tanta certeza.
Folha - Mas, também para Fernando Henrique, a questão é o desenvolvimento do país e sua inserção em melhores patamares no sistema econômico internacional...
Limoeiro Cardoso - As condições são muito diferentes e acho que não é a mesma questão, não é o mesmo desenvolvimento.
Há, realmente, uma aproximação quando um e outro pretendem ser construtores de um projeto que vise a integração do país, no melhor nível, no cenário do desenvolvimento capitalista internacional.
Mas o momento é outro. Naquela época você tinha uma expansão do capital com grandes possibilidades para alguns países do Terceiro Mundo. O grande capital estava disponível e selecionando mercados onde poderia ser investido com uma rentabilidade maior.
Folha - Mas hoje também o capital procura esses países, ainda que de forma mais "volátil": vai para o México, vai para a Argentina, muda para o Brasil...
Limoeiro Cardoso - É verdade, mas naquela época esse capital que se expandia internacionalmente, embora já fosse multinacional, trabalhava com uma diferença muito grande entre os grandes centros dinâmicos e as outras áreas, para as quais ele afluía topicamente.
Hoje é diferente. A empresa multinacional desmembra a própria produção, atua em vários cantos do mundo, não há mais aquela velha divisão -você teve uma reorganização da própria produção em escala mundial.
Os tipos de vínculos que são criados com os setores locais do capital também são diferentes.
Além disso, naquela época estava presente a "ameaça comunista" e havia uma preocupação muito grande com isso. Nesse aspecto, Juscelino foi um conservador de primeira, um anticomunista ferrenho.
Folha - Fernando Henrique Cardoso está diante do desafio de convencer o país e obter a adesão para um projeto de desenvolvimento, que seria, como em JK, "o único caminho". No caso, a inserção do Brasil na globalização e no receituário "neoliberal". Você vê esse paralelismo?
Limoeiro Cardoso - O que falo sobre JK é fruto de uma pesquisa, de um trabalho sistemático, que eu não fiz em relação ao governo atual, mesmo porque ele está em curso.
Mas eu vejo uma outra diferença dramática: como disse, a proposta desenvolvimentista do Juscelino pode ser qualificada como uma proposta ideológica de inclusão.
Já a proposta atual não só é excludente de fato, como também é excludente no discurso. Uma característica básica do neoliberalismo -e talvez por isso o nosso presidente não goste de ser caracterizado como parte desse processo- é colocar a exclusão como parte do discurso: ela é aceita como tal.
Fernando Henrique, que é um homem inteligente, preparado, e que teve um papel intelectual importante, tenta, como político, obscurecer um pouco esse lado.
Folha - Como o discurso atual justifica suas opções?
Limoeiro Cardoso - De dois modos. Um argumento é uma espécie de realismo cínico exacerbado: "isso não tem jeito, isso é assim, só há esse caminho e quem não vê é tolo, burro, ignorante". Desqualifica-se o interlocutor, quando qualquer pessoa razoavelmente informada sabe que a história só se faz com alternativas. Não há becos sem saída.
O outro argumento é o da meritocracia. Aqueles que são postos para fora, seja o médio capital, seja o trabalhador, são encarados como incompetentes, como não-competitivos. Eles precisariam se reciclar, se atualizar para voltar a participar. Se não conseguirem, a culpa é deles.
Acontece que o que se vê no mundo -e isso é pouco divulgado no Brasil- é uma perspectiva excludente e não includente. O desemprego em massa faz parte do sistema, estruturalmente.
E aqui no Brasil aponta-se para um futuro absolutamente desprovido de contextualização, como se o país ao atingir "dimensão de Primeiro Mundo" fosse resolver esse tipo de problema.

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