São Paulo, domingo, 12 de janeiro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O combate diário pela modernidade

PAULO VENANCIO FILHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Ser absolutamente moderno" foi o desafio lançado por Rimbaud em meados do século passado. Como, no Brasil, país atrasado, tudo estava para ser feito, nossa modernidade tem muito de urgente e de artificial, de relativo e contraditório, nuances de ambiguidade. Daí a dificuldade de encontrar entre nós personalidades integralmente modernas.
Um dos exemplos máximos é provavelmente o caso de Monteiro Lobato, sob certos aspectos mais moderno que muitos dos modernos radicais, noutros absolutamente antimoderno. Algo parecido ocorreu com Cecília Meireles. É do que trata o livro "A Farpa na Lira: Cecília Meireles na Revolução de 30", de Valéria Lamego, ao revelar um aspecto intelectual inédito da poeta um tanto emblemática do nosso modernismo convencional.
Em 1930 a educação era assunto. Assunto diário, cotidiano. Assunto de jornal. O que hoje pode causar espanto. Mais espanto ainda é saber que Cecília Meireles publicava então uma coluna diária, combativa, eloquente e progressista sobre assuntos relativos à educação no Brasil, Durante três anos, de 1930 a início de 1933, Cecília escreveu no jornal "Diário de Notícias" do Rio de Janeiro a "Página da Educação", cerca de 750 artigos nos quais defendia incondicionalmente o projeto de uma educação moderna, democrática, antiautoritária -uma educação no horizonte das massas.
A coincidência entre o início da página de Cecília no "Diário de Notícias" e a Revolução de 30 não é superficial. A Revolução de 30 vinha para liquidar definitivamente com o Brasil arcaico, colocar o país ao lado das nações modernas e projetá-lo para o futuro. Aí cabia à educação um papel fundamental. Esta deixava de ser mera ilustração aristocrática, privilégio de classe ou quase permissão para a ociosidade. Tornava-se matéria técnica, científica a exigir um corpo de especialistas qualificados, deixando para trás aquele ambiente muitas vezes sombrio dos colégios religiosos, jesuíticos ou das instituições autoritárias de castigos terríveis como o "Ateneu" descrito por Raul Pompéia.
A educação seria projeto, programa, método e não mais repetição de hábitos seculares. Assim o intelectual brasileiro deixava de ser um contemplativo para ingressar na esfera da ação. Foram essas as forças que a Revolução de 30 suscitou e também em muito desiludiu.
É essa progressiva desilusão que acompanhamos nos artigos de Cecília Meireles. Cecília é descrita por Mário da Silva Brito como uma "figura solitária", "aérea e fluida", que "paira acima do drama contemporâneo e, assim, não se insere no momento histórico" e "manifesta-se praticamente através de solilóquios e, se se inspira na natureza, manipula dos dados sensoriais, concretos, de modo a torná-los abstratos ou subjetivos. Falta-lhe porém, densidade dramática, de sentido coletivo".
Essa descrição pode corresponder à poesia de Cecília, não aos seus artigos na "Página da Educação". Pois não há nada de solilóquios nos artigos de Cecília, dirige-se persuasivelmente ao público leitor, ao elemento médio e esclarecido; em suas posições não há nada de abstrato e subjetivo, suas idéias partem do dado objetivo e concreto, sempre percebendo um "sentido coletivo", frequentemente carregados de uma "densidade dramática" indignada.
São artigos bem-humorados, eloquentes, irônicos, cáusticos e combativos. Age como uma publicista esclarecida das idéias da "Escola Nova" de Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira ao qual Cecília se juntou no Grupo do Manifesto, que assinou, em março de 1932, o "Manifesto da Nova Educação ao Governo e ao Povo". É surpreendente vermos essa "primeira-dama de nossa poesia" chamar Getúlio Vargas diretamente de "Sr. Ditador", criticar seguida e veementemente o restabelecimento do ensino religioso obrigatório e, entre outras, realizar uma das mais contundentes demolições jamais feita do "Hino Nacional".
No seu livro Valéria Lamego afirma que "analisar a 'Página de Educação' é trazer à luz dois momentos distintos: o dos intelectuais, que se encaminham rumo ao processo de definição de seu papel na sociedade brasileira, e o dos políticos revolucionários, cuja indefinição ideológica era a marca do período". Nessa análise encontrou, por trás da lira uma farpa de poucos conhecida. Uma farpa incômoda, Cecília Meireles.
Este livro de Valéria Lamego tem o mérito e o valor de ser um capítulo de um aspecto de nossa história cultural: o da verificação isenta das contradições e ambiguidades intelectuais e artísticas dos grandes da nossa cultura.

Texto Anterior: A ficção refém da alegoria
Próximo Texto: DIÁRIOS 1; DIÁRIOS 2; TEATRO 1; TEATRO 2; UPDIKE; HISTÓRIA; EROTISMO; BURROUGHS; LITERATURA; MUSEUS; SANTOS
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.