São Paulo, domingo, 12 de janeiro de 1997
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A ficção refém da alegoria

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Silviano Santiago e João Gilberto Noll não são marinheiros de primeira viagem. Ao contrário, já deixaram para trás, há tempos, a via-crúcis da estréia, a angústia do segundo livro, premiações e aclamação, aplauso e apupos. Seus mais novos trabalhos, "Keith Jarret no Blue Note", de Santiago, e "A Céu Aberto", de Noll, devem ser lidos como obras pensadas e maduras, não como acidentes de percurso literário.
E ambos, em que pesem toda experiência, prestígio e Jabutis acumulados pelos autores, sofrem de um mesmo mal que vem castigando a ficção brasileira recente, atônita e bloqueada, presa num impasse, em busca de ar.
O "savoir-faire" crítico e criativo de Silviano Santiago, em dia com as experiências da fusão de gêneros literários e do virtuosismo narrativo como critério de excelência estética, brinca, mais uma vez, com os limites entre voz autoral e personagem, vivência e ficção, memória e invenção, não estivesse ele por trás de "Em Liberdade" -pseudo-sequência das "Memórias do Cárcere", de Graciliano Ramos, elas próprias de gênero híbrido- e de "Viagem ao México", romances que se alimentam desta confusão de planos entre o literário e o factual.
Alinhavado por uma voz autoral em off, que se empenha em um falso diálogo com o protagonista, ("No passado, você suportava mal o exibicionismo pretensioso de Keith, soltando grunhidos de euforia e cantarolando em falsetto a melodia do 'Concerto de Colônia' ao fundo"), "Keith Jarret no Blue Note" captura os fragmentos do discurso amoroso de um solitário urbano, um literato brasileiro em exílio branco, voluntário, dividido entre duas pátrias, como em seu sonho que liga, vasos comunicantes de uma ampulheta, o "skyline" de Manhattan às águas da Lagoa Rodrigo de Freitas.
A narrativa, fluente, de estrutura musical, obedece, em cada uma das cinco seções, às atmosferas particulares sugeridas pelas baladas que compuseram um show, gravado ao vivo, do pianista do título. As impressões de um outono americano puxando na memória outro parisiense; a solidão expressa nos flashes urbanos (loja de discos, lixo das ruas) e nas folhas secas, mortas, das árvores e de uma revista pornô; o telefone que toca em meio à desordem do apartamento, portador de resquícios de contatos passageiros ou de vestígios da intimidade enterrada no passado: os quadros sucedem-se em blocos que se encerram na despedida tardia ao amigo e amante morto.
O resultado é um painel do isolamento contemporâneo nas grandes cidades, particularizado por uma série de traços distintivos do narrador (a vida no exterior, o homossexualismo). A quase confissão cede parte do seu espaço à ficção como moeda na definição da identidade das chamadas minorias.
Já "A Céu Aberto" de Noll é um "tour de force" da narração em primeira pessoa. Situado num país anônimo, em guerra, o romance acompanha as errâncias de um garoto que, no empenho de salvar o irmão caçula, doente, parte em busca do pai na frente de batalha. Os percalços neste caminho avolumam-se sob o peso de uma realidade desfigurada pela fantasia, estilhaçada pelos fantasmas das memórias, do desejo, dos temores.
A atmosfera surreal da narrativa transforma o irmão em noiva, une e separa o novo casal na expectativas de um filho, expulsa o personagem em direção à guerra e depois à deserção, à existência pacata e clandestina no campo. Multiplicam-se os desencontros do protagonista com os que o rodeiam, projeções infelizes de uma busca pelo encontro amoroso feliz, que se encerra, malsucedida, na litania de um velho decrépito, marinheiro decadente num porto desconhecido, sozinho.
A paráfrase aproximada já antecipa o ritmo da prosa de Noll, de jorros expressivos, coalhada de livres associações, bordejando o onírico e o poético. Falar da "fúria do corpo" (título de outro dos romances do autor) naturalmente convida ao alegórico, como resposta às seculares imagens de autocensura, autoridade e repressão introjetadas, ao peso da religiosidade herdada (o que não quer dizer que a prosa de Noll seja uma prosa tímida).
Numa paisagem de neblina, em meio a uma guerra que aparece como metáfora de uma situação limite e do abandono do sujeito no mundo, o que pesa negativamente não é a economia de referências, que pareceria o acompanhamento natural de um romance como este, mas a sobrecarga de elementos tomados ao real, incoerente com as premissas formais do livro.
Um episódio em que irmão metamorfoseado em noiva foge com um dramaturgo em potencial para a Suécia (por que a Suécia?) é apenas um dos exemplos destas pontes canhestras que o romance acaba estabelecendo entre o cenário desrealizado e a geografia precisa, perdendo o melhor dos dois mundos.
Tanto no falso diálogo, solitário, do protagonista de "Keith Jarret no Blue Note" como na saga do herói de "A Céu Aberto" parece que a consciência dos autores e a vontade ficcional, enfim, o projeto, falam mais alto do que a matéria narrativa. O risco, nem sempre evitado, é de que o estilo se torne maneira, caricatura de si próprio, longe da autenticidade que acompanha a obra bem realizada -perigo que, na cena atual, está por vir a ser contornado.

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