São Paulo, domingo, 12 de janeiro de 1997
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O mundo selvagem de Roberto Arlt

'As Feras' abre coleção do escritor argentino

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Numa de suas "água-fortes", publicada num jornal argentino em 1941, Roberto Arlt (1900-1942) define sua preocupação de escritor: "Enquanto o romance moderno vem tratando de determinar os mais finos movimentos atômicos da alma das personagens... os físicos, ao tratar de determinar a arquitetura do átomo... vivem aventuras materiais... cujas consequências nenhum romancista até aqui foi capaz de descobrir, ou de transformar em romance... A aventura é... descobrir o modo de subtrair um elétron de um átomo de hélio no mesmo momento de beijar uma mulher".
Nesta citação, redigida um ano antes de sua morte precoce, aos 42 anos, Arlt faz convergir mais do que sua preocupação com a vanguarda romanesca e o entusiasmo pela tecnologia. Pois não é menos característico o seu tom, enigmaticamente situado entre a utopia e a bufoneria; e é igualmente marcante o cenário final de folhetim, esse beijo de Gardel recontado por Maiakovski. Para os leitores de Arlt -uma confraria cada vez maior, que agora deve se estender ao Brasil, com o lançamento de suas obras pela Iluminuras- salta aos olhos, também, a involuntária profecia de consequências nada literárias, mas arltianamente apocalípticas da aventura nuclear, em pleno curso da Segunda Guerra Mundial.
Profecia, utopia e tecnologia são três musas um tanto imprevistas deste grande mestre da selvageria moderna. Sua cidade é menos a Buenos Aires da década de 30, quando escreveu a maior parte de seus romances, contos e peças teatrais, do que uma outra capital do futuro -quase a Buenos Aires de hoje- sobreposta fantasticamente à primeira: "Distância encaixotada pelas altas fachadas entre as quais parece flutuar uma neblina de carvão. Ao longo dos frisos, verticalmente às molduras, caixilharias fosforescentes, perpendiculares azuis, horizontais amarelas, oblíquas roxas. Incandescências de gases de ar líquido e correntes de alta frequência... Ônibus verdes trepidam surdamente camadas de pavimento e alicerces. Acima das coberturas um teto de céu sujo, borrado... A Lua mostra sua borda de prato amarelo, cortada por fios de corrente elétrica", escreve em "Noite Terrível" (1933), um dos contos de "As Feras" (na excelente tradução de Sérgio Molina).
"Sim, a cidade é linda", diz ele em "O Amor Bruxo" (1932), descrevendo arranha-céus, luminosos e locomotivas. É um outro fervor de Buenos Aires, muito distante das mitologias de Borges, seu maior contemporâneo. Esta paisagem caótica, suja, turbulenta e metálica é a cidade do centro, não dos arrabaldes; o cenário alegórico por excelência de uma prosa igualmente congestionada, excessiva, impura, na qual os registros mais diversos vão se cruzando. Que ninguém se iluda com o entusiasmo urbano de Arlt: suas utopias são sempre negativas, como já salientou Ricardo Piglia (em "Crítica y Ficción"); Piglia, aliás, que é um de seus maiores continuadores, numa linhagem variada, que inclui Cortázar e Onetti.
A Buenos Aires de Arlt é estranha como seu sobrenome, um grande tango polifônico, no qual se escutam de hinos do Exército da Salvação a más traduções castelhanas de Dostoiévski, de manuais de ciências ocultas a lições de anarquismo e lembranças de Nietzsche, de sexologia a espiritismo, teologia e gíria popular (lunfardo). Quanto à tecnologia, representa para ele uma espécie de "saber dos pobres", na expressão de Beatriz Sarlo (em "La Imaginación Técnica"); uma alquimia modernista, a esperança sempre renovada de transformar idéias em dinheiro. (Incidentalmente, Arlt alimentou, sem sucesso, ambições de inventor: patenteou uma meia com reforço de borracha no calcanhar e botou fogo na casa duas vezes, com outras experiências.)
A literatura de Arlt tem também essa dimensão de máquina; e seu estilo, assumidamente "ruim", aceita a mistura de vozes por princípio, uma livre circulação de palavras. "Qualquer professora de escola primária pode corrigir uma página de Arlt, mas não seria capaz de escrevê-la", comenta Piglia, em "Respiração Artificial". O resultado é uma espécie de fantasia técnica, movida pela combustão de elementos básicos do funcionamento social: poder, dinheiro, identidade, reduzidos à matéria-prima da desrazão e recombinados para gerar sua antimatéria, cujo nome novo é literatura.
Walter Benjamin, leitor de Walser e Kraus, teria sido um grande leitor dos contos de Arlt. A começar pelo "Corcundinha", que dá título à edição original e põe de imediato em jogo um universo grotesco, muitas vezes revisitado, de ficções sobre o casamento. Há um outro corcunda no livro, "que rouba vidros de morfina na enfermaria", para compartilhá-los com o grupo de ladrões, falsários, cafetões, prostitutas e outras feras que circulam por esses escritos como os habitantes legítimos da Terra. Naqueles pontos em que a personalidade se desintegra, prestes então a participar da prosa de Arlt, esses corcundas assumem "abominavelmente" a voz "de mim mesmo", ou de cada um de nós, visitantes espantados dos contos. O kitsch de Arlt é uma droga homeopática, para combater as catástrofes do casamento, do empreendimento, até do próprio gênio (como na obra-prima do ressentimento literário, "O Escritor Fracassado").
O modernismo gótico de Arlt passa com facilidade dos grandes prédios e pequenas empreitadas aos grandes despossuídos, seja da sociedade (miseráveis, loucos, assassinos), seja da literatura (a pequena burguesia ordinária, que ele registra como ninguém em seu país). Traz, de fato, à prosa argentina um outro repertório de palavras, destinado não só à construção de imagens da vida urbana, mas mais do que isto a uma reportagem impiedosa das paixões e perversões de homens e mulheres desapaixonados -especialmente homens, para este escritor irônica, mas tão masculinamente portenho.
"Cada um (desses ex-homens) enxerga em si mesmo um mistério inexplicável, um nervo ainda não catalogado, partido no mecanismo da vontade" ("As Feras"); e cada um, então, se afunda em tristezas, mas, "quando relembra as mulheres que castigou, sorri com doçura de hipopótamo, bufando água e barro no juncal de um pântano". Em frases como essa, Arlt deixa entrever a ferocidade de narradores sem paciência com "a felicidade da humanidade... apoiada na mentira metafísica... ou, privada desta, nas ilusões de caráter econômico" ("Os Sete Loucos", 1929). O contador de melodramas é ao mesmo tempo um teórico da fraude e da delação, que ele nos ensina a ver com olhos literários também. O que é meramente estranho, absurdo, sofisticadamente ingênuo em outros autores da época torna-se, aqui, uma ocasião para o erro, a loucura e a estupidez -um dos motivos, decerto, pelos quais Arlt não envelhece.
Desde o grande livro de Oscar Masotta, "Sexo y Traición en Roberto Arlt", de 1965, que iniciou o resgate de Arlt de sua "marginalidade", tornou-se lugar-comum apontar a relação, na sua obra, entre humilhação e conhecimento. Esta equação tem um papel central nos contos de Arlt sobre o matrimônio, como "Noite Terrível" (a véspera das bodas), ou "Uma Tarde de Domingo" (adultério com a mulher do amigo), além do "Corcundinha" (teste de amor para a noiva). São escritos dignos de figurar ao lado de "A Pensão", de Joyce, ou das cartas de Kafka a Milena, numa antologia de textos modernistas sobre o casamento.
"Casar é uma maneira de se suicidar." "O ceticismo é um vício perigoso." O contraponto dessas duas frases resume a questão implícita nas formas de humilhação e conhecimento apontadas por Masotta, que podemos ler agora de outro modo. O interesse de Arlt pela banalidade cotidiana, assim como sua atração pela técnica, de um lado, e a psicologia extravagantemente realista, de outro, são os elementos de fundo para pensar a relação entre ceticismo e casamento.
As personagens de Arlt -mulheres esperançosas e ardilosas ao mesmo tempo, à caça de um marido com quem ser feliz, ou infeliz; homens compelidos ao casamento, misóginos que resistem e se arrependem de casar, ou de não casar- essas personagens parecem "brinquedos raivosos" no cenário mal-resolvido do casamento como espaço moderno do afeto. Não há limite para o que cada uma delas seja capaz de fazer, para não se deixar encontrar pelo outro. Não há limite, afinal, para o que cada uma delas seja capaz de fazer para não se deparar consigo mesmo, que é a questão central do ceticismo, narrada por Arlt em roupagem de época, mas interesse permanente.
Haveria muito mais o que dizer sobre esse grande autor argentino. A presença, ou esclarecimento, ou acusação da Argentina na sua prosa, o que Horacio Gonzalez define como uma "respiração diabólica" da nacionalidade. O contraste, nada casual, entre a literatura de Arlt e a de contemporâneos como o grupo de Boeda, para não falar de Guiraldes, ou Borges. A dimensão política de romances como "Os Sete Loucos" e "Os Lança-Chamas", nem à esquerda, nem não à esquerda. O virtuosismo, para nós, convincente da reciclagem textual nos seus textos. A coragem literária e afetiva desse visitante obsessivo dos infernos. A invenção de Buenos Aires, capital da língua argentina. A passagem da tecnologia -jornalismo e rádio- à literatura, na era da reprodução mecânica. E o humor! -o humor de Arlt: outra utopia negativa, no limite do interpretável. São temas nossos, de novo, ou para sempre, por analogia ou tradução e que esse escritor nos obriga a pensar, com 60 anos de atraso, no momento em que os leitores brasileiros chegam afinal ao desafio e à surpresa de ler Roberto Arlt.

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