São Paulo, domingo, 12 de janeiro de 1997
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A poesia além da resistência

BENJAMIN ABDALA JUNIOR
ESPECIAL PARA A FOLHA

É como reação comunitária ao processo de integração forçada à Indonésia que se pode situar a literatura de língua portuguesa produzida no Timor Leste. A língua do antigo colonizador torna-se assim, nessa ambiência de marcada polarização política, veículo de expressão libertária contra o genocídio físico e cultural promovido pela ditadura indonésia, que invadiu o país em 1975.
Com agressividade correlata àquela que forçou pelas armas o deslocamento de cerca de um terço da população, essa política colonialista totalitária da Indonésia exerce-se igualmente contra os valores culturais dos múltiplos grupos etnolinguísticos da nação maubere e também contra setores, sobretudo citadinos, de fala portuguesa. Expressar-se em português no Timor Leste, nesse sentido, tornou-se símbolo de identidade nacional dos mauberes e um índice de subversão para a repressão política indonésia, que chegou a proibir até o ensino da língua portuguesa nesse país.
A língua portuguesa, no Timor Leste, foi marcada pela influência das línguas tradicionais, sobretudo pelo tétum, que predomina ao nível da oralidade. O idioma português constituía, até a invasão, a impropriamente chamada "língua de cultura" dos textos oficiais, dos jornais e outros meios de comunicação. Na literatura, tanto antes da invasão como agora, o tétum segue paralelamente ao português ou com ele se imbrica, matizando o idioma do antigo colonizador. Tal matização revela o descentramento em que se situam os escritores timorenses, adotando uma perspectiva popular maubere (a palavra "maubere", designativa dos setores populares, teve sua significação ampliada, recobrindo os naturais da terra).
Mais do que emblema da resistência do povo timorense, a atividade literária em língua portuguesa constitui hoje manifestação simbólica da forma como ele se imagina enquanto nação, por meio da mediação de seus escritores. Na verdade, o próprio horizonte nacional timorense, que supera os particularismos étnicos, é construção dessa intelectualidade. "Timorense já se chama Timor", diz no poema "Mauberíadas", Xanana Gusmão, nome timorense de José Alexandre Gusmão, dirigente guerrilheiro no cárcere, em nome de quem Ramos Horta recebeu a sua parte do Prêmio Nobel da Paz.
Fundem-se no novo nome do poeta-dirigente o registro do sobrenome português e a oralidade timorense. Na poesia, analogamente, a tradição escrita portuguesa é trabalhada pelos poetas timorenses na óptica da tradição oral dos "Lia-Nain" (Senhores da Palavra). A atitude poética é de intervenção política explícita: os textos editados costumam ser bilíngues, com criação em tétum e em português, como nesta canção de Borja da Costa, morto quando da invasão do país pela Indonésia, tornada uma espécie de hino da emancipação timorense: "Eh! Foho Ramelau, foho Ramelau eh!/ Sá bé as liu ó tutun, sá bé bein liu ó lolon eh!/ Tan sá Tiomur oan hakruuk bei-beik/ Tan sá Timur oan atan bei-beik? (...)". Ela foi traduzida livremente pelo próprio autor: "Oh! Monte Ramelau, Monte Ramelau!/ Que é que é mais alto que o teu cume!/ Que é que é mais majestoso que a tua imponência!/ Por que é que a cabeça do Timor há-de curvar-se eternamente? (...)".
Ramelau é uma cadeia montanhosa, onde se encontra o pico Tata-Mai-Lau, igualmente referenciado como símbolo da identidade nacional dos timorenses. Nesse pico, segundo a tradição animista, estariam os antepassados dos timorenses. Essas referências simbólicas de identidade, de caráter neo-romântico, são singularidades geográficas altamente frequentes numa literatura que procura se reconhecer. Reconstituem-se, com um mesmo sentido de identificação, lendas relativas às origens míticas da própria ilha. Atualizam-se essas narrativas orais em novas fabulações na escrita literária, como no conto "O Crocodilo Que se Fez Timor", de Fernando Sylvan: a história do crocodilo que ao não encontrar condições de sobrevivência na costa asiática deslocou-se para o oceano, levando uma criança. Lá ele cresceu, dando origem à ilha, e a criança, a seu povo.
Fernando Sylvan, recentemente morto em Lisboa, teve a sua obra literária e ensaística publicada na diáspora timorense. São de sua autoria os seguintes versos: "Pedem-me um minuto de silêncio pelos mortos mauberes/ Respondo que nem por um minuto me calarei". Coexistem, em sua produção literária, manifestações poéticas de urgência, ao lado de outras, de caráter antropológico, como no conto de fundação acima referido, ou de expressões líricas, como neste fragmento do poema "Infância", que integra a coletânea de sete poemas timorenses "Enterrem Meu Coração no Ramelau", significativamente editado pela União dos Escritores Angolanos (Luanda, 1978): "As crianças brincam na praia dos seus pensamentos/ e banham-se no mar dos seus longos sonhos/ a praia e o mar das crianças não têm fronteiras (...)".
Poderiam ser ainda mencionados outros escritores do Timor Leste que figuram na coletânea literária do livro "Timor Timorense, com Suas Línguas, Literaturas, Lusofonia...", de autoria de Artur Marcos (Lisboa, Edições Colibri, 1995). É necessária a referência de um intelectual português, autor de relevantes estudos antropológicos sobre o Timor Leste: Ruy Cinatti. Se Fernando Sylvan pode representar a voz nacional na diáspora, diáspora que se direciona atualmente sobretudo para a Austrália, o português Ruy Cinatti é autor da obra poética de temática timorense mais bem realizada artisticamente.
Os poemas de Ruy Cinatti fixam-se na ambiência social e cultural de Dili, a capital do Timor Leste. E, ao incorporar temas timorenses, faz autocrítica da colonização portuguesa. No poema "Invocação ao Tata-Mai-Lau", de seu livro "Paisagens Timorenses com Vulto" (Ed. Lisboa, Relógio D'Água, 1996), solicita ação efetiva do pico simbólico da identidade timorense: (...) "Por ti me ergo da modorra obscura,/ penhor sensível,/ valor em sangue!/ Por ti invoco arcas da aliança,/ frutos da Terra, verídica herança!/ Morro contigo, ambos nós o signo-símbolo/ -justa lembrança! Os que te amam sofrem de sofrer/ tamanha impotência (...) Vem ver/ a terra talhada/ pela incúria, pela soez mistura/ do falso e do real,/ a solidão como raiz nas almas,/ a fome inicial/ mordendo o ar!/ Tata! Acaba de vez com a mentira. Afina o teor que vibra ainda/ e se lamina ao sol da desventura!/ Mata! Ressuscita!/ Desce ao Timor!".
Como é de se observar, os fatos poéticos imbricam-se enfaticamente com os políticos na literatura do Timor Leste, quer o poeta esteja em solo nacional ou na diáspora. Literariamente, o Timor está em tempo de formação e, como ocorre na política, tem recebido ultimamente apoio internacional, inclusive para além dos limites dos países de língua portuguesa -uma forma de identificação comunitária que imaginam seja capaz de contribuir para viabilizar potências asiáticas. Trata-se de um projeto complexo. Para tanto contam que a CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) evolua da retórica das intenções para ações mais efetivas no campo político, econômico e cultural. Isto é, como o Tata-Mai-Laí do poema de Ruy Cinatti, essa sigla-símbolo precisaria mover-se de suas alturas, descendo ao solo do Timor.

Onde encomendar: A coletânea "Enterrem Meu Coração no Ramelau" e os livros "Timor Timorense, com Suas Línguas, Literaturas, Lusofonia...", de Artur Marcos, e "Paisagens Timorenses com Vulto", de Ruy Cinatti, podem ser encomendados à Livraria Portugal (r. Genebra, 165, São Paulo, tel. 011/604-1748).

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