São Paulo, sexta-feira, 17 de janeiro de 1997
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Supérfluos

MAILSON DA NÓBREGA

No fim do ano, a Folha ressuscitou a acepção que o termo supérfluo possuía na época do fechamento da economia. "Importação de supérfluos vai a US$ 1 bilhão" foi o título da primeira página de 30 de dezembro de 1996.
Segundo o Aurélio, supérfluo é aquilo que é demais; inútil por excesso; desnecessário. Ao pé da letra, a Folha disse que não precisamos de brinquedos, guardas chuvas, panetones, móveis, instrumentos musicais, tapetes.
Na realidade, sob o protecionismo, a palavra sofreu um desvio semântico.
Produtos conhecidos como bugigangas eram supérfluos quando importados, mas essenciais quando produzidos por aqui. Era a época da substituição de importações.
Houve períodos em que o supérfluo cedeu importância para o termo similar. Não podia ser importado com incentivos fiscais o bem que tivesse similar nacional. Falava-se até numa "lei do similar", que jamais existiu como tal.
Similar, dizia a norma, seria o produto com melhores condições de preço, qualidade e prazo de entrega. Dependendo, entretanto, de quem julgava e das circunstâncias, esses requisitos eram postos de lado. Similar virava, assim, barreira não-tarifária.
O subjetivismo para definir supérfluo não era menor. Amêndoas, passas, nozes e castanhas não eram supérfluos no Natal, mas passavam a sê-lo no Carnaval.
Tempos heróicos. Quando o enredo era o da política industrial, o supérfluo exercia duplo papel. Barrá-lo significava viabilizar a produção doméstica, que iria substituí-lo. No mesmo ato, passava de vilão a mocinho.
No fundo, o conceito de supérfluo era essencial (sem trocadilho) para gerenciar o racionamento de reservas nos sufocos cambiais, que foram muitos. Era a época de adaptar a pauta de importações a essa circunstância.
Aí, o arsenal contra os supérfluos aumentava: tarifas aduaneiras fenomenais de até 250%, IOF na liquidação do câmbio, programas individuais de importação, exacerbação do licenciamento prévio e assim por diante.
Nos anos 80, quando se agravou o problema cambial, houve o famoso "anexo C". Era uma saída ao mesmo tempo radical e necessária; mais de 3.000 produtos com importação suspensa. Era época da proibição da importação de supérfluos.
Quando tudo isso era insuficiente; apelava-se para a heterodoxia. A importação dos supérfluos morria no burocrático "despacho de gaveta". A última linha de resistência era a ortodoxia, ou seja, o câmbio. Era a época das maxidesvalorizações.
Todo esse imbróglio levou o imaginário popular a ver a importação de certos bens de consumo como contrária aos interesses nacionais. O raciocínio é parente próximo da idéia de que o melhor para o país é obter superávit na balança comercial.
Não se pode condenar as políticas de substituição de importações ou de controle cambial do passado, pois elas tiveram sua época e sua justificativa. Com erros e acertos, deram sua contribuição ao desenvolvimento e ao enfrentamento de crises.
É preciso, todavia, começar a rever o conceito deformado de supérfluo. Justiça se faça ao texto de Célia de Gouvêa Franco, base para o citado título da Folha. São quase duas páginas destacando os benefícios econômicos e sociais da abertura. O termo supérfluo aparece uma única vez.
Esse é o ponto. A abertura não é fator de aumento da importação de supérfluos, um conceito ultrapassado, mas de contribuição à reestruturação das empresas, à estabilidade e ao bem-estar.
Perguntem aos que passaram a ter acesso a produtos mais baratos e de melhor qualidade, nacionais ou estrangeiros, se estão contra essas importações. Foram elas, em muitos casos, o pivô da melhoria.
Com a abertura, não cabem mais termos como essencial e supérfluo no dicionário do comércio exterior, o qual, como se sabe, é uma via de duas mãos. O conceito que vale agora é o de troca mutuamente benéfica entre parceiros.
Se julgamos, por exemplo, que a importação de penugem é supérflua, temos de achar o mesmo da exportação de peixes ornamentais e artesanato.
É verdade que não se justifica, como diz a matéria, a importação de produtos como crustáceos. Não porque seja um supérfluo, mas porque o país tem tudo para ser um produtor grande e competitivo.
A balança comercial pode até ter problemas; nunca por causa dos supérfluos.

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