São Paulo, sexta-feira, 17 de janeiro de 1997
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Eruditos invadem o popular

MARCELO REZENDE
DA REPORTAGEM LOCAL

Para esquecer o ritmo dos musicais, como "Evita", o americano Michael Daugherty oferece um quarteto de cordas para Elvis, uma ópera em homenagem a Jacqueline Kennedy e, como se já não fosse o suficiente, uma sinfonia dedicada ao Super-Homem.
Daugherty faz parte, ao lado dos ingleses John Harle, Gavin Bryars e Michael Nyman, de uma geração de músicos e compositores eruditos que, há três anos do próximo século, acredita que o gênero só sobreviverá se perder seu ar de nobreza para encontrar, finalmente, a cultura popular.
A intenção pode não ser nova nem messiânica. Mas apenas nos últimos dois meses uma série de lançamentos comprova que há uma fuga do sublime em direção às histórias em quadrinhos, ao jazz ou às letras de um ex-punk.
Abrigados em sua maioria no selo europeu Argos (a exceção é Bryars, na Point Music, onde grava também o grupo brasileiro Uakti), com diferenças de idade, formação e tempo no mercado, o que parecem indicar é que a época dos pianos tocados com martelos e orquestras executando concertos para travesseiros está condenada.
Há ainda, claro, a experimentação, mas o que se sobrepõe a isso é o desejo de ser tão adorado quanto Brahms, Schubert ou Vivaldi.
"Há um certo sentido em imaginar que a proximidade com a cultura popular pode ser uma saída para a música erudita", fala o maestro Julio Medaglia.
"A idéia de se fechar em um universo não existe mais. E isso é um problema para os compositores contemporâneos, que devem penetrar na indústria cultural e elevá-la, pois essa é a atitude contemporânea."
John Harle tentou o feito ao lado do músico pop Elvis Costello -um dos reis da new wave nos anos 80- em "Terror Magnificence"; Nyman quase entrou na moda por ter feito a trilha sonora do filme "O Piano". Prepara agora um concerto para celo e saxofone.
Bryars se arriscou com um trabalho para dois baixos dedicado ao jazzista Charlie Haden em "Farewell to Philosophy", seu mais recente (e criticamente aprovado) trabalho.
O inglês é um veterano no meio e um precursor na causa. Em princípio alinhado aos minimalistas (compositores em que a obra é baseada na repetição de mínimos elementos musicais), seu primeiro trabalho gravado é de 1968.
Na trajetória, Bryars já afundou por mais de uma vez o Titanic, na obra vocal "The Sinking of the Titanic", e fez dupla com o americano Tom Waits em "Jesus's Blood Never Failed Me Yet". Gravou com Harle e seus trabalhos foram adotados pelo quarteto Kronos.
Os americanos do Kronos são o grande padrinho dos novos eruditos. Além de Bryars gravaram também "Elvis Everywhere", "Sing Sing: J. Edgar Hoover" e "Desi", todas escritas por Michael Daugherty.
Esta última foi composta para o marido da comediante Lucille Ball, Desi Arnaz, do seriado televisivo "I Love Lucy".
"O Kronos vai com o mais completo despudor em direção ao som, sem sentimentalismo ou nostalgias", fala ainda Medaglia.
"Não acho que necessariamente a idéia de aproximação da cultura popular seja a única saída. Esse 'única' me incomoda. A música erudita reflete o movimento musical de sua época. O que vale é a imaginação e a capacidade de invenção", pensa o também maestro Jamil Maluf.
Talvez, em um futuro bem próximo, seja possível ir à ópera de tênis. E sem culpa.

Disco: Farewell to Philosophy
Lançamento: Point Music (importação)
Quanto: R$ 25 (em média)

Disco: Terror Magnificence
Lançamento: Argo (importação)
Quanto: R$ 25 (em média)

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