São Paulo, sexta-feira, 17 de janeiro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"Spitfire Grill" prega volta dos EUA ao útero

MURILO GABRIELLI
ESPECIAL PARA A FOLHA

A América está doente. Ao diagnóstico, não de todo original, o filme "Spitfire Grill" ajunta a receita para a cura. Como uma criança assustada, os EUA devem voltar para o colo da mãe, redescobrir a maternidade.
Gilead é uma cidade perdida no meio do Maine, decadente, com uma população envelhecida. Sua pacata vida começa a mudar com a chegada de uma ex-presidiária, Percy, que passa a trabalhar no único restaurante da cidade, o Spitfire Grill, cuja dona é Hannah.
Quando a proprietária sofre um acidente, cabe à recém-chegada assumir o estabelecimento, ajudada por Shelby, mulher -submissa- do sobrinho de Hannah.
Apesar da acolhida pouco calorosa que Percy recebe, claro está que ela é o arauto de um novo tempo para a região. É ela, por exemplo, que dá a idéia de se rifar o Spitfire -rifa em que, além do dinheiro, deve-se enviar um texto com as razões para querer o local.
Claro está também quem, se Percy pode ajudar a redimir a cidade, a ela própria a terra prometida será interditada. A garota, descobre-se a horas tantas, não pode gerar filhos. Essa incapacidade torna sua vida incompleta e a impede de ser a representante de uma América renascida.
Também Hannah padece de dificuldades com a maternidade -e, portanto, de acordo com o filme, com a condição de mulher. Seu filho está desaparecido desde a Guerra do Vietnã. Durante toda película ela tenta se reconciliar com essa perda.
Resta então Shelby. Aparentemente uma mulher frágil, que aguenta calada as provocações do marido. Aos poucos, entretanto ela se transforma, ultrapassa suas limitações, impõe novos termos à relação com o marido e desempenha um papel de destaque.
Essa força repentinamente exposta já existia latente. Afinal, Shelby é mãe e daí retira sua vitalidade. Todo o filme se pretende uma metáfora da maternidade e do renascimento. Não é por acaso que, nas cenas finais, com a volta da esperança, passem crianças a ocupar a tela, antes era povoada majoritariamente por adultos.
Se preconiza o renascer, "Spitfire Grill" não quer o novo. Deve-se renovar o elenco, apenas para interpretar o mesmo roteiro -com algumas pequenas e necessárias adaptações.
Não é por acaso, também, que boa parte da ação se passe em uma cozinha, de preferência durante a preparação do café da manhã, refeição que no imaginário hollywoodiano serve para como símbolo da união familiar, ou ainda, como motivo para solitários se reunirem em cafeterias.
Nesse novo velho mundo o papel do homem em quase nada se altera. Por mais vil que seja -como é o caso do marido de Shelby-, ele tem, por meio do uso da razão e da experiência, a possibilidade de aprender e justificar sua existência.
À mulher cabe o papel de mãe, de objeto de perpetuação da vida -e não seu sujeito. Ela pode ter se libertado do jugo masculino, mas não escapa de um determinismo natural, da ditadura de seu útero.

Filme: Spitfire Grill - O Recomeço
Direção: Lee David Zlotoff
Produção: EUA, 1996
Com: Allison Elliott, Ellen Burstyn
Quando: a partir de hoje no Belas Artes, sala Cândido Portinari, e Calcenter 1

LEIA MAIS sobre estréias de cinema à pág. Especial-2

Texto Anterior: Wenders termina filme contra violência
Próximo Texto: D.R.I. traz "crossover" sujo e imbecil
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.