São Paulo, sexta-feira, 17 de janeiro de 1997
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Coisas (mal) julgadas

SAULO RAMOS

Seria loucura e falta de educação meter-me no delicioso debate, entre Clóvis Rossi e Heitor Cony, sobre Juscelino, que tem resvalado sobre Jânio, generais, Sarney e Collor. Atrevo-me, porém, a enfiar, na conversa deles, um desses linques de desvios, tão comuns aos navegadores da Internet e que, quase sempre, levam ao um nada ter que ver com o assunto original do ponto de partida.
Estava em Paris, sem ser moço feliz, acompanhando, como advogado, a liquidação do Grupo Mário Simonsen, o verdadeiro, no início do golpe (no Brasil) de 1964. O escritório do grupo, Wasin, era numa rua dos Champs-Elysées, travessa da avenida George V.
Juscelino encontrava-se exilado por lá, se não me engano no Trocadéro, um bairro próximo. E todo fim de tarde aparecia no escritório para ler os jornais do Brasil, que a Panair, antes de ser assaltada, entregava pontualmente.
Claro que o convidava para ler em minha sala. A princípio, por ser extremamente educado, Juscelino não quis aceitar, mas acabou se acostumando. Enquanto ele lia, eu trabalhava. De vez em quando, um papo sobre as notícias da terrinha. E, de papo em papo, fomos ficando amigos e eliminamos a maldita distância que havia entre nós pela simples circunstância de ter sido eu amigo e oficial de gabinete de Jânio Quadros, quando presidente da República, eleito graças às violentas críticas contra Juscelino, como Collor com Sarney.
Com a intimidade, passamos a sair juntos no fim do expediente. Havia na esquina um bar chamado Vernet, hoje demolido. Bom e barateiro, sobretudo quanto ao vinho nacional.
Juscelino vinha para o papo, mesmo quando não havia jornais brasileiros, que passaram para um tipo de segundo plano nas nossas tardes francesas. Nesse clima, senti-me autorizado a fazer uma boa intriga. E contei-lhe que, um dia, Jânio me confessou ter por ele imensa admiração: "Juscelino é um homem doce e puro. A política é que nos faz amargos uns com os outros".
Lembro-me que gostou. Em troca, confidenciou-me estar muito mais magoado com o exílio que se impôs em razão da ditadura instalada, sob o simulacro da eleição indireta, em que um de seus amigos mais íntimos, e antigo companheiro de política, havia sido eleito vice-presidente da República, que lhe cassou os direitos políticos e os de Jânio.
Mas os dois, amargos ou doces, entraram para a história, sem cassação alguma dos direitos maiores de serem reverenciados em suas memórias, pois cada qual, a seu modo e a seu tempo, foi estadista, qualidade que vem rareando entre nós.
Há, porém, no Brasil, certos modismos, prestigiados de tal maneira e com tal força pela imprensa de época, que passam a ter autoridade de coisa julgada. Juscelino foi cassado por ser corrupto. Mas o vice-presidente do governo, que o cassou, tinha sido seu ministro da Fazenda. Tratou-se, pois, de condenação por um crime impossível, ou cínica, porque nenhum presidente poderia praticar corrupção sem a conivência do ministro da Fazenda.
Jânio, ao renunciar, teria acusado "forças ocultas". Ora, o querido mato-grossense jamais falou em forças ocultas. Detestava o ocultismo. A expressão era de Getúlio. Jânio referiu-se a "forças terríveis". Mas, na imprensa, ninguém consegue mudar a expressão a ele atribuída. Transitou em julgado.
A Panair teve suas linhas cassadas porque estava falida. Trinta anos depois, o Supremo decidiu que a companhia era solvente e que a falência foi pretexto para o assalto ao seu patrimônio. O que restou dela? Nada além da música de Milton Nascimento e de um imenso crédito contra a União, que não mais será usufruído por Paulo Sampaio nem por Celso da Rocha Miranda. Mas a Panair estava falida, ninguém muda isso nos conceitos da imprensa.
Outro fato imutável é o que se diz de Sarney. Distribuiu licenças de rádio e televisão para "ampliar" seu mandato de quatro para cinco anos. Pode? A idiotice é gritante, pois o mandato de Sarney era de seis anos. Logo, ampliar para cinco é bobagem. Se a Constituinte lhe desse quatro, como queria Mário Covas, o Supremo restabeleceria imediatamente o mandato de seis.
Por ser isto verdade inconstitucional indiscutível, houve a negociação para fixar o mandato em cinco anos, e pronto, ninguém iria, como não foi, ao Supremo discutir os poderes da mãe da cidadã. Desculpem-me se classifico de idiotice essa coisa julgada, mas é que há unanimidade em torno da versão historicamente errada, e o adjetivo acaba imposto pelo mestre Nelson Rodrigues quando analisa as opiniões unânimes.
Outra que pegou foi considerar a Constituinte de 1988 dotada de poderes originários, o que somente é possível nas inaugurais (países novos) ou nas convocadas pelas revoluções vitoriosas, em ambos os casos sem instituições funcionando. Ela foi instituída por uma emenda e, portanto, derivada da Constituição em vigor. Assim, teve competência juridicamente limitada, porque as instituições estavam em pleno funcionamento. Mas ninguém enfia isso no conceito da imprensa.
Na imprensa, ninguém consegue convencer-se de que juiz profere sentença e não parecer. E de que o Ministério Público não dá voto e sim parecer. Como esse caldo de cultura tem vasos comunicantes, a gente assiste a delegado de polícia, em novelas de televisão, dizendo que vai formalmente denunciar suspeitos ao promotor público.
Tem-se, portanto, que respeitar e temer certas posições "definitivas" da gloriosa imprensa. Escaldado nessa antiga e fria experiência, prefiro não me meter no debate entre Rossi e Cony, nestes últimos desacordos -bem sustentados de lado a lado, que talento não lhes falta- sobre a biografia de Juscelino e as de outros brasileiros ilustres. Só espero que da querela não resultem outras coisas julgadas.

José Saulo Pereira Ramos, 67, é advogado em São Paulo, foi consultor-geral da República e ministro da Justiça (governo Sarney).

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