São Paulo, sexta-feira, 17 de janeiro de 1997
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Pyongyang é aqui

EMIR SADER

"Êxtase estatístico": com essa expressão, o historiador britânico Perry Anderson caracterizou a enxurrada de manipulações estatísticas com que o governo entulhou a grande imprensa no final de ano.
A afirmação -reiterada em artigo do presidente Fernando Henrique Cardoso (Folha, 29/12/96)- de que "13 milhões de brasileiros já deixaram a linha da pobreza" mereceu de Anderson a caracterização de "surrealista, virtualmente de caráter norte-coreano", mais ainda se o crescimento industrial do país ficou abaixo de 2% no último ano. E conclui Anderson: "Nenhum país na história conseguiu um feito dessa ordem", aconselhando: "O senso comum deveria prevenir essas fantasias".
Uma pesquisa realizada pela Marplan para a "Veja" parece ser a fonte desses arroubos surrealistas. A única indicação do método é a de que "a amostragem abarca 20 milhões de pessoas" (sic). Uma falta de rigor que mereceria reprovação em qualquer de nossas vilipendiadas (pelo governo) universidades públicas.
O presidente tem sido fértil em exibição de números que se revelam equivocados: anteriormente já havia dito que 5 milhões de famílias haviam superado a linha da pobreza, graças ao Real, quando se tratava, mesmo no seu cálculo, de 5 milhões de pessoas.
O aumento da safra de feijão foi anunciado por ele como de 18%, dado corrigido logo depois para 5%. Anunciou que o consumo de carne havia aumentado quase 100%, quando não chegou a aumentar 5%. Afirmou que o aumento de consumo de frango havia sido de 80% quando foi de 16%.
Nas mãos de um homem com a formação intelectual de FHC, fica sempre a desconfiança de que as intenções não são de análise, mas de convencimento imediato, de abastecer o coro da grande imprensa, que, por sua vez, alimenta as pesquisas de opinião.
O pior é que esses dados pouco confiáveis ocupam o lugar dos balanços das previsões feitas um ano antes. O crescimento prognosticado de 5% ficou numa margem de erro de 40% a 50%. O déficit comercial ia ser magicamente transformado em superávit, mas terminou num resultado negativo de US$ 5 bilhões. Já o déficit público -chave no diagnóstico do governo para estabilizar definitivamente a moeda- melhoraria, não superando os 2% do PIB, porém mais essa previsão mais do que dobrou.
A impressão que fica é de que as previsões otimistas para este ano servem mais para fazer esquecer as promessas não cumpridas do ano anterior. Nenhuma autoridade se apresentou para dar conta de seus prognósticos. Uns dizem que nunca previram nada, outros se escondem no otimismo -a principal praga atual, segundo Norberto Bobbio, "porque impede de pensar".
Esse otimismo que atinge as raias do êxtase estatístico é hoje um atributo da chamada "pensée unique", embora a recomendação dos marqueteiros nacionais e estrangeiros é a de que costuma garantir muitos votos.
Perry Anderson afirmava que a reeleição serve para que o presidente deixe de lado o que já foi uma de suas bandeiras -a reforma política. Pior: parece substituir o debate sobre as condições em que a democracia se encontra, com mais de uma medida provisória ao dia -já houve 13 num único dia-, em que a saúde se encontra, em que a organização social se encontra, quando, no governo FHC, a maior parte dos brasileiros já deixou de ter carteira assinada, jogada no desamparo da informalidade e do trabalho precário.
Quem tiver paciência, que guarde as previsões de hoje, para confrontá-las daqui a um ano. Mas aí, no cálculo do governo, a reeleição já terá sido aprovada, assim como a privatização da Vale, o presidente do Senado já será ACM, seu filho será ministro, e as previsões para 1988 -imaginem o seu tamanho, num ano eleitoral!- estarão prontas.
Antonio Kandir não necessitará demonstrar que a aprovação da reeleição possibilitou o crescimento de 9% (sic) da economia -a mágica quantificação do casuísmo: 6% a mais de crescimento, segundo o ex-ministro de Collor- nem FHC precisará mostrar a historiadores atônitos que Pyongyang é aqui.

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