São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 1997
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Julieta e a tragédia do amor confiante

HAROLD BLOOM
ESPECIAL PARA A FOLHA

Harold Goddard, em "The Meaning of Shakespeare" (1951), chama a atenção para o interesse de Shakespeare por relações conflituosas entre as gerações de uma família, que é um dos temas, também, da tragédia grega. Deixando de lado "Titus Andronicus", uma de suas primeiras peças (paródia macabra do teatro de Marlowe), "Romeu e Julieta" foi a primeira tentativa séria de Shakespeare de escrever uma tragédia e também sua primeira investigação mais profunda das perplexidades no trato entre as gerações.
O ódio entre Capuletos e Montéquios pode soar exagerado e digno de paródia, mas acaba levando à destruição de dois amantes muito jovens e de imenso valor, Julieta dos Capuletos e Romeu dos Montéquios, além de Mercúcio, personagem muito mais interessante do que Romeu. Romeu, no entanto -transportado pelo amor autêntico entre Julieta e ele-, é um dos primeiros casos da representação shakespeareana de mudanças cruciais num personagem que se escuta a si mesmo. E Julieta, de sua parte, um exemplo ainda maior, é o triunfo real da peça: ela inaugura uma extraordinária sequência de mulheres vibrantes, capazes de dar lustro à vida e inigualadas antes ou depois na literatura ocidental (não excluindo Chaucer, o maior precursor de Shakespeare como criador de personalidades).
Julieta, Mercúcio, a Ama e, em menor escala, Romeu estão entre as primeiras figuras que já manifestam o gênio inusitado do autor na invenção de personagens. Ricardo 3º, como Arão, o Mouro, em "Titus Andronicus", é uma brilhante caricatura marloweana, mas carece de qualquer forma de interioridade, o que também se aplica às personagens das primeiras comédias. Faulconbridge, o bastardo, em "Rei João", e Ricardo 2º representam os primeiros sucessos de Shakespeare neste aspecto, antes de "Romeu e Julieta". Depois de Julieta, Mercúcio e da Ama, viriam Bottom (em "Sonho de uma Noite de Verão"), Shylock e Pórcia ("O Mercador de Veneza") e, de modo arrasador, Falstaff ("Henrique 4º"), com quem Shakespeare atinge, afinal, verdadeiramente o seu elemento.
Harold Goddard notou, sabiamente, que a Ama, incapaz de qualquer astúcia, imaginação e, acima de tudo, de amor, mesmo por Julieta, está longe de ser um Falstaff, tão abundante de criatividade, humor, inteligência e (infelizmente, no caso) amor pelo ingrato Hal. A Ama é cheia de vivacidade e muito engraçada, mas acaba se revelando exatamente aquilo que Julieta a chama: sua "mais cruel inimiga", cujo carinho por ela não tem nenhuma realidade interior. Em certo sentido, a responsável pela tragédia é a Ama, cuja incapacidade de amar a criança que ela mesma criou acaba conduzindo Julieta à medida extrema que destrói Romeu e ela também.
Mesmo Mercúcio, um papel maravilhoso, no fundo é tão frio quanto a Ama. Embora seja o primeiro esboço em Shakespeare de um indivíduo carismático (Berowne, em "As Penas de Amor Perdidas" pode ser um artista brilhante das palavras, mas não tem propriamente carisma), Mercúcio constitui companhia perigosa para Romeu e torna-se redundante assim que este passa da atração sexual para o amor, isto é, de Rosalina a Julieta. É senso estabelecido entre os diretores teatrais que Shakespeare tem de matar Mercúcio logo, porque Romeu parece um pedaço de pau comparado a seu exuberante amigo. Mas Mercúcio se torna irrelevante quando Julieta e Romeu se apaixonam profundamente um pelo outro. Que lugar teria ele numa peça dominada pela confissão esplendorosa de Julieta da infinidade de seu amor:
"Mas estou desejando aquilo que já tenho!/ A minha generosidade é como o mar:/ Ilimitada! E o meu amor profundo/ Como o mar! E ambos são tão infinitos,/ Que quanto mais te der, mais tenho para dar!" (tradução de Onestaldo de Pennafort).
Compare-se esses versos com a obscenidade habitual de Mercúcio: "Se (o amor) fosse cego, nunca acertaria no alvo./ Ele está escondido em alguma romeira,/ Unindo em pensamento a fruta e a sua amada./ Como as mocinhas, quando estão sozinhas./ Oh! Romeu, se ela fosse uma romã rachada/ E tu, e tu uma pera pontuda!".
Julieta vai crescendo, cada vez mais, na peça, e Romeu (que é só parcialmente um convertido do amor) diminui inevitavelmente à sombra dela. Isso se deve, em parte, ao que viria a ser uma longa carreira de Shakespeare comparando mulheres e homens, em prejuízo destes -carreira que tem início aqui. Mas em parte, também, o defeito trágico já está em Romeu, que se deixa levar rapidamente demais por muitas emoções: fúria, medo, pesar, desespero. Esse defeito leva à morte de Teobaldo e ao suicídio de Romeu e Julieta.
Shakespeare tem o cuidado de tornar Romeu tão culpado, a seu modo, quanto Mercúcio e Teobaldo. Julieta, em total contraste, permanece isenta de defeitos: ela é uma santa do amor corajoso e confiante, rejeitando os conselhos maldosos da Ama e fazendo o possível para reafirmar a verdade do amor, da qual é a encarnação. O nome da peça pode ser "A Tragédia de Romeu e Julieta", mas os dois amantes são trágicos de maneiras muito diferentes. Julieta, profetizando a elevação carismática de Hamlet, transcende até sua autodestruição e morre nas alturas. Romeu, que não está nesse plano, sofre uma morte mais patética. Ambas as mortes nos comovem, mas Shakespeare deixa bem claro que, das duas perdas, a de Julieta, para nós, é muito maior.

Tradução de Arthur Nestrovski.

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